Lesão ao tempo do consumidor no direito brasileiro

AutorCarlos Edison do Rêgo Monteiro Filho
Ocupação do AutorProfessor Titular e ex-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ
Páginas27-44
LESÃO AO TEMPO DO CONSUMIDOR NO
DIREITO BRASILEIRO
Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho
Professor Titular e ex-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Faculdade de Direito da UERJ. Doutor em Direito Civil e Mestre em Direito da Cidade
pela UERJ. Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Advogado e consultor em temas de
direito privado. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior
de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE).
Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil).
Sumário: 1. Introdução. 2. O tempo como bem juridicamente tutelado. 2.1 Dignidade e tempo
da pessoa humana: liberdade e solidariedade. 2.2 Manifestações do tempo nas relações jurí-
dicas: prestação principal e deveres anexos da boa-fé objetiva. 2.3 A reparabilidade da lesão
ao tempo. 3. Problemas de lesão temporal: reparação autônoma ou incidental. 4. Repensando
a dogmática: qualicação, limites da lesão ao tempo e suas possibilidades reparatórias.
1. INTRODUÇÃO
A concepção científ‌ica de tempo originou-se a partir de associações com o conceito
de espaço. O tempo referia-se à grandeza física necessária para percorrer certo espaço;
este último, por sua vez, era o que se podia percorrer em determinado intervalo de
tempo.1 E, no decorrer da história, tempo e espaço, entrecruzados, assemelhavam-se
como categorias rígidas e impassíveis de controle artif‌icial pelo homem. As distâncias
ligavam-se à capacidade física da vida biológica.
Com o advento da modernidade, contudo, meios artif‌iciais criados pelo ser humano
pouco a pouco desconstruíram essa estanque relação. Produto da Revolução Industrial,
máquinas mais velozes a cada geração, encurtando distâncias, atuam de modo relevante
no processo de diminuição do espaço-tempo. Afora isso, a evolução contínua dos meios
de comunicação reduziu o espaço entre as pessoas a tal medida que hoje, ao menos vir-
tualmente, as fronteiras sejam eliminadas por completo. A tecnologia, assim, permitiu
que se esteja em qualquer local, sem que se faça necessário deslocar-se até ele.2
No cenário em que o f‌luxo de dados se intensif‌ica e agiganta, em inimagináveis
velocidade e volume de informações trocadas, a concepção de tempo na atualidade
parece modif‌icar-se de todo. Paradoxalmente, cria-se uma proporção inversa: quanto
1. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. p. 128.
2. Cunha-se a ideia de onipresença virtual, e, dentro dessa ordem, então, Zygmunt Bauman, indicando que o espaço já
se encontra conquistado, propõe renovada relação entre tempo e espaço – processual, mutável e dinâmica (BAUMAN,
Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. p. 131): “A relação entre tempo e espaço
deveria ser de agora em diante processual, mutável e dinâmica, não predeterminada e estagnada. A ‘conquista do
espaço’ veio a signif‌icar máquinas mais velozes. O movimento acelerado signif‌icava maior espaço. Nessa corrida, a
expansão espacial era o nome do jogo e o espaço, seu objetivo; o espaço era valor; o tempo, a ferramenta”.
CARLOS EDISON DO RÊGO MONTEIRO FILHO
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mais rápida a sociedade é, menos tempo tem. A pós-modernidade assiste à renovação de
valores outrora considerados fundamentais.3 No trato social, a linguagem direta e objetiva
prevalece em era de hipercomplexidade. Às ref‌lexões lentas e elaboradas prefere-se o
raciocínio dito em tempo real, na constante busca de soluções pragmáticas e imediatas,
a f‌im de se poupar cada segundo. Na percepção sensorial do indivíduo, os ponteiros do
relógio passam a correr cada vez mais céleres. Está-se diante de sociedade que enxerga
no tempo um bem inestimável e cada vez mais escasso, a ser fruído a partir das escolhas
próprias de cada pessoa humana.4
2. O TEMPO COMO BEM JURIDICAMENTE TUTELADO
Na ciência jurídica, o tempo apresenta diversas perspectivas. Ora se af‌igura requisito
de ef‌icácia de direitos potestativos, os quais, sob pena de perecerem, somente podem ser
exercidos dentro de certo prazo (decadência). Outras vezes, pode ser concebido como
fato jurídico condutor da conversão da posse em propriedade (usucapião), ou como
pressuposto para a extinção de eventual pretensão, dada a inércia, por seu titular, do
exercício de determinada situação jurídica subjetiva (prescrição extintiva).5 Pode tam-
bém determinar o nascimento ou a extinção de determinada situação jurídica subjetiva
(como nos casos de aposição de condição ou termo nos negócios jurídicos).6
3. Para uma análise aprofundada a respeito da cultura na sociedade pós-moderna, cf. LLOSA, Mario Vargas. A civili-
zação do espetáculo: uma radiograf‌ia do nosso tempo e da nossa cultura. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013. p. 27: “A
diferença essencial entre a cultura do passado e o entretenimento de hoje é que os produtos daquela pretendiam
transcender o tempo presente, durar, continuar vivos nas gerações futuras, ao passo que os produtos deste são
fabricados para serem consumidos no momento e desaparecer, tal como biscoitos ou pipoca. Tolstoi, Thomas Mann
e ainda Joyce e Faulkner escreviam livros que pretendiam derrotar a morte, sobreviver a seus autores, continuar
atraindo e fascinando leitores nos tempos futuros. As telenovelas brasileiras e os f‌ilmes de Hollywood, assim como
os shows de Shakira, não pretendem durar mais que o tempo da apresentação, desaparecendo para dar espaço a
outros produtos igualmente bem-sucedidos e efêmeros”.
4. Sobre o valor do tempo livre, remete-se à valiosa passagem de MASI, Domenico de. O ócio criativo. Rio de Janeiro:
Sextante, 2000. p. 299-300: “Tempo livre signif‌ica viagem, cultura, erotismo, estética, repouso, esporte, ginástica,
meditação e ref‌lexão. [...] Em suma, [signif‌ica] dar sentido às coisas de todo dia, em geral lindas, sempre iguais e
divertidas, e que infelizmente f‌icam depreciadas pelo uso cotidiano”.
5. Esta tentativa de promover uma unidade conceitual aos termos é objeto de críticas pela doutrina. Conf‌iram-se as
críticas de Pontes de Miranda: “Por haver regras jurídicas comuns à prescrição e à usucapião, tentaram a unidade
conceptual; mas essa unidade falhou sempre. Também falha, a olhos vistos, a artif‌icial e forçada simetrização dos
dois institutos” (MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, t. VI, 2000. p. 139). E,
nesta esteira, Orlando Gomes arremata: “Uma vez que a prescrição aquisitiva é conhecida e regulada pelo nome de
Usucapião, usa-se, sem qualif‌icativo, a que extingue ou libera direitos. Toda vez que se faz referência à prescrição,
pura e simplesmente, designa-se a prescrição extintiva ou liberatória” (GOMES, Orlando. Introdução ao direito
civil. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 384). Assim, à luz das conclusões do saudoso autor baiano, usar-se-á no
presente trabalho o termo prescrição para designar a hipótese de prescrição extintiva ou liberatória.
6. “A inf‌luência que o tempo tem sobre as relações jurídicas é bastante grande, bem como a que tem sobre todas as
coisas humanas. E além de grande é também bastante variada. Direitos que não podem surgir senão em dadas
contingências de tempo; direitos que não podem ter senão uma duração preestabelecida, quer f‌ixada pela lei, quer
pela vontade privada; direitos que não podem exercer-se fora de certo prazo; direitos que se adquirem e direitos
que se perdem em consequência do decurso de um certo período de tempo – destes e de outros modos o elemento
tempo manifesta a sua importância, posto que frequentemente ele não seja apenas o único fator que produz tais
efeitos, mas com ele concorram outros, como o comportamento de uma pessoa, a sua abstenção ao exercício de
um poder, a condição subjetiva de boa-fé, a existência ou inexistência de um fato, de uma obra, de um sinal etc.
Não é possível constituir uma regra geral com o modo como a lei trata este importantíssimo elemento, dada a
disparidade da sua função de caso para caso. Há, no entanto, alguns princípios de caráter geral que se referem à

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