O tempo do direito da responsabilidade civil aquiliana e a banalidade do dano na sociedade de risco

AutorFrancisco Arthur de Siqueira Muniz
Ocupação do AutorDoutorando em Direito Civil pela Universidade de Coimbra
Páginas67-91
O TEMPO DO DIREITO DA
RESPONSABILIDADE CIVIL AQUILIANA
E A BANALIDADE DO DANO
NA SOCIEDADE DE RISCO
Francisco Arthur de Siqueira Muniz
Doutorando em Direito Civil pela Universidade de Coimbra. Visiting Researcher da
National University of Singapore. Mestre e Bacharel em Direito pela UFPE. Advogado.
Sumário: 1. Impostação do problema: o delineamento do espaço de experiência e do horizonte
de expectativas normativas que ensejaram a formação da intencionalidade constitutiva da
responsabilidade civil extracontratual, e o papel do instituto no atual contexto de emergência
de formas alternativas ao direito. 2. Indicação dos pressupostos gnoseológicos e circunscrição
do objeto de investigação. 3. Um diálogo entre C. Neves e H. Arendt para a compreensão dos
objetivos e sentido do direito da responsabilidade civil: um alerta para os perigos das alterna-
tivas ao direito. 4. Do futuro passado do direito no alvorecer da modernidade ao horizonte de
expectativas normativas da sociedade no contexto pós-moderno: a (re)armação do espaço
da responsabilidade civil delitual e das soluções alternativas concorrentes. 5. Referências.
1. IMPOSTAÇÃO DO PROBLEMA: O DELINEAMENTO DO ESPO DE
EXPERIÊNCIA E DO HORIZONTE DE EXPECTATIVAS NORMATIVAS QUE
ENSEJARAM A FORMAÇÃO DA INTENCIONALIDADE CONSTITUTIVA DA
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL, E O PAPEL DO INSTITUTO NO
ATUAL CONTEXTO DE EMERGÊNCIA DE FORMAS ALTERNATIVAS AO DIREITO
É cediço que a problematicidade decorrente da análise conjunta dos conceitos de
“tempo” e “direito” pode assumir distintos matizes, a depender dos pressupostos gno-
seológicos assumidos pelo investigador e dos objetivos do estudo. Compreender que
o direito e o tempo estão dialeticamente entretecidos1, que a def‌inição do tempo está
vinculada à sociedade que sobre ele ref‌lete2, assim como o direito é uma resposta cultu-
ralmente humana constituída por exigências humano-sociais particulares3, compõem
alguns dos pontos de partida das observações doravante delineadas sobre as distintas
instâncias da temporalidade (passado, presente e futuro) do direito da responsabilidade
1. OST, François. O tempo do direito. Lisboa: Instituto Piaget, p. 14.
2. “a def‌inição de tempo está ligada à sociedade em que vivemos (Claude Lefort, Cornelius Castoriadis). Nessa
perspectiva, o tempo é contextual (espacial).” (ROCHA, Leonel Severo; DUARTE, Francisco Carlos. O direito e o
tempo social. In ROCHA, Leonel Severo; DUARTE, Francisco Carlos. A construção sociojurídica do tempo: teoria
do direito e do processo. Curitiba: Juruá, 2012, p. 16).
3. NEVES, A. Castanheira. Metodologia jurídica – problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra, 1993, p. 47.
FRANCISCO ARTHUR DE SIQUEIRA MUNIZ
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civil aquiliana, no contexto atual da emergência de formas alternativas de regulação da
vida dos homens em sociedade4.
Tratar-se-á neste trabalho, pois, primeiramente de apresentar, com esteio nas cate-
gorias meta-históricas cunhadas por Reinhart Koselleck5, o “espaço de experiência” que
levou a construção do direito da responsabilidade civil delitual e – a partir do estudo dos
distintos “horizontes de expectativas” normativas da sociedade industrial do século XIX
e da sociedade contemporânea (esta última, cujas inúmeras nominações e características
serão posteriormente apresentadas) – compreender como se pode delinear e f‌irmar a
imprescindibilidade do direito da responsabilidade civil extracontratual, em um cenário
de emergência de sistemas socializadores de riscos e de pensamentos que compreendem
os objetivos do direito dissociados de seu sentido, tratando-o como mero instrumento,
como ordens de necessidade (alternativa construída pelo poder), resultados (construídos
por uma social tecnologia científ‌ica) ou f‌inalidade político-social6.
Nesse contexto, perquire-se, outrossim, acerca do problema da justa def‌inição dos
critérios de imputação de responsabilidade: compreender até que ponto o sistema de
responsabilidade assente na culpa pode ser mitigado pela objetivação da responsabili-
dade pelo risco ou por mecanismos assistencialistas securitários. É dentro do contexto
do embate entre o dogmatismo de conservação, mantenedor de um sistema arrimado de
4. A relevância do estudo da responsabilidade civil aquiliana, espécie de categoria central do direito, para a compre-
ensão da problemática surgida do referido contexto pode ser inferida, v. g. da seguinte af‌irmação de BRONZE: “a
responsabilidade, como expressão (como uma das expressões...) prático-cultural e normativo-jurídica da pesso-
a-demiurgo-do-direito, revela-se-nos, consonantemente, um dos fundamentos capitais das mais emblemáticas
manifestações da juridicidade.” (BRONZE, Fernando José. “A responsabilidade, hoje (algumas considerações
introdutórias)” In: CORREIA, Fernando Alves; MACHADO, Jónatas E. M.; LOUREIRO, João Carlos (Orgs.) Es-
tudos em homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho, v. I – Responsabilidade: entre futuro e passado.
Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 207).
5. KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência e horizonte de expectativa” In: KOSELLECK, Reinhart. Futuro
Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-RJ, 2006, p. 305-327.
Para Koselleck, o tempo histórico é uma grandeza variável conforme o momento e a sociedade que sobre eles ref‌lete,
e esta modif‌icação é inferida a partir de categorias coordenadas que entretecem o passado e o futuro: a experiência
e a expectativa. O citado historiador conceitua a categoria “experiência” nos seguintes termos: “A experiência é
o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados e podem ser lembrados. Na experiência se
fundem tanto a elaboração racional quanto as formas inconscientes de comportamento, que não estão mais, que
não precisam estar mais presentes no conhecimento. Além disso, na experiência de cada um, transmitida por
gerações e instituições, sempre está contida e é preservada uma experiência alheia. Neste sentido, também a his-
tória é desde sempre concebida como conhecimento de experiências alheias.” (Ob. Cit., p. 309-310). A opção por
uma metáfora espacial ao conceber o campo da “experiência” é assim justif‌icada pelo autor: “Tem sentido se dizer
que a experiência proveniente do passado é espacial, porque ela se aglomera para formar um todo em que muitos
estratos de tempos anteriores estão simultaneamente presentes, sem que haja referência a um antes e um depois.”
(Ob. Cit., p. 311) Acerca da noção categorial de expectativa, assevera que “também ela é ao mesmo tempo ligada
à pessoa e ao interpessoal, também a expectativa se realiza no hoje, é futuro presente, voltado para o ainda-não,
para o não experimentado, para o que apenas pode ser previsto. Esperança e medo, desejo e vontade, a inquietude,
mas também a análise racional, a visão receptiva ou a curiosidade fazem parte da expectativa e a constituem.” (Ob.
Cit., p. 310) E sobre a metáfora que acompanha a categoria da expectativa, assim a justif‌ica: “É mais exato nos
servirmos da metáfora do horizonte de expectativa, em vez de espaço de expectativa. Horizonte quer dizer aquela
linha por trás da qual se abre no futuro um novo espaço de experiência, mas um espaço que ainda não pode ser
contemplado. A possibilidade de se descobrir o futuro, apesar de os prognósticos serem possíveis, se depara com
um limite absoluto, pois ela não pode ser experimentada.” (Ob. Cit., p. 311).
6. Para uma exposição minudenciada acerca das ordens alternativas ao direito, vide NEVES, A. Castanheira. O direito
como alternativa humana: notas de ref‌lexão sobre o problema actual do direito. Digesta. Coimbra: Coimbra Editora
1995, p. 300-307. v. 1.

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