Do sentido da responsabilidade aos sentidos da responsabilidade: da role responsibility à liability; a responsabilidade contratual e a responsabilidade patrimonial

AutorMafalda Miranda Barbosa
Ocupação do AutorUniv Coimbra, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/ University of Coimbra Institute for Legal Research, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Páginas141-172
DO SENTIDO DA RESPONSABILIDADE
AOS SENTIDOS DA RESPONSABILIDADE:
DA ROLE RESPONSIBILITY À LIABILITY;
A RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
E A RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL
Mafalda Miranda Barbosa
Univ Coimbra, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/
University of Coimbra Institute for Legal Research, Faculdade de Direito da Univer-
sidade de Coimbra.
Sumário: 1. Introdução. formulação do problema. 2. O sentido mais densicado da responsabi-
lidade: responsabilidade pelo outro e responsabilidade perante o outro. 3. A responsabilidade
contratual: liability e responsabilidade-repartição do risco. 4. Responsabilidade-garantia. 5.
Conclusão.
1. INTRODUÇÃO. FORMULAÇÃO DO PROBLEMA
Na década de 60 do século XX, Hart, num seu estudo, ref‌letia sobre os diversos senti-
dos que o termo responsabilidade poderia assumir1. Entre eles, falava da role responsibility,
a indicar que, se uma pessoa está investida num determinado cargo, lugar, estatuto, papel,
f‌ica adstrita a especiais deveres, alguns dos quais se podem prender com a promoção do
bem-estar dos outros ou a prossecução dos objetivos de uma dada organização; de causal
responsibility, em cuja aceção o responsável se vem a identif‌icar com o causador de um
ato, pelo que não só os humanos, mas também as coisas, os animais ou os fenómenos
não humanos podem ser considerados responsáveis2; de liability responsibility, que, ao
contrário do sentido pretérito, implica já uma tomada de posição acerca do mérito da
conduta, afastando-se do mecanismo característico da visão responsabilizatória causal, a
qual olha para a responsabilidade como o simples desencadear de um efeito na realidade,
já que a pessoa, neste sentido da liability, pode vir a ser responsável pelos atos pratica-
dos por terceiros; de capacity responsibility, sentido intrinsecamente ligado ao anterior,
na medida em que a responsabilização do agente implica a existência de determinadas
faculdades mentais e psicológicas sem as quais ele não se autodetermina3.
1. HART, H. L. A. Punishment and Responsibility, Essays in the Philosophy of Law, Oxford University Press, 1968, 210
s.; HART, H. L. A. “Varieties of responsibility”, Law Quarterly Review, 83, 1967, 346.
2. HART, Punishment and Responsibility, 214.
3. HART, Punishment and Responsibility, 226 s.
MAFALDA MIRANDA BARBOSA
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Os diversos sentidos da responsabilidade, no pensamento do autor, não são estan-
ques. Pelo contrário, a liability está muitas vezes dependente da causal responsibility ou
da capacity responsibility. Por seu turno, a role responsibility pode conduzir à liability.
Não obstante, o autor salienta a dif‌iculdade, por vezes sentida na apreciação do caso
concreto, de determinar os concretos deveres que oneram o sujeito em virtude da posição
em que está investido, isto é, de preencher aquela role responsibility. No conceito, inclui
todas as obrigações que impendem sobre a pessoa como decorrência de um particular
acordo f‌irmado, no mundo contratual, tendo, não obstante, a cautela de, num esforço
de compartimentação categorial, alertar que o sentido do termo responsabilidade não
se confunde com o de dever específ‌ico. A separá-los a consciência da complexidade e
extensão da primeira, a implicar a conformação de uma sphere of responsibility, requiring
the exercise of discretion and care usually over a protracted period of time4.
Peter Cane, por seu turno, considera que a taxonomia apresentada por Hart não é
satisfatória. E contrapõe outras distinções. Assim, fala, em primeiro lugar, da dicotomia
entre a historic e a prospective responsibility. A primeira olha para os eventos no passado;
a segunda prende-se com a determinação de obrigações e vem identif‌icada, na língua in-
glesa, com a ideia de role ou task, podendo consubstanciar-se naquilo que o autor designa
por productive responsibility (direcionada para a produção de resultados positivos) ou na
preventive responsibility (destinada a prevenir resultados negativos)5. Para Cane, uma das
insuf‌iciências do pensamento de Hart na matéria prende-se com o âmbito de perceção
da sua role responsibility. Segundo o autor, ela incluiria a productive mas não a preventive
responsibility. Interessante na análise proposta por Peter Cane é a ligação do problema com
a divisão entre a responsabilidade por omissão e a responsabilidade por ação e bem assim
uma intuição da diversa intencionalidade que perpassa o mundo contratual e o mundo
delitual. Uma segunda critica dirigida a Hart centra-se na amplitude do modo como a
role responsibility surge desenhada, dado não fornecer nenhum critério para identif‌icar
as específ‌icas obrigações que leva incorporadas. Nessa medida, Cane considera que ela
identif‌ica mais a responsabilidade como uma virtude ou qualidade humana6.
Um sentido axiologicamente comprometido da responsabilidade civil não pode
deixar de levar em consideração a distinção entre a role responsibility e a liability e de
contaminar os dois sentidos da responsabilidade, na articulação necessária entre ambas,
com as notas do dever. Dito de outro modo, a responsabilidade perante o outro (a liability)
só se operacionaliza porque, a montante, o sujeito é responsável pelo outro. Esta respon-
sabilidade pelo outro não resulta, apenas, de um especial estatuto ou cargo que o sujeito
ocupe, ou de um acordo entre eles f‌irmado, mas do simples facto de ser pessoa e de, por
isso, ter de assumir especiais deveres de precaução (deveres no tráfego) para com o seu
próximo. E se alguns desses deveres podem ser consagrados pelo legislador ou decorrer
da atividade encabeçada pelo pretenso lesante, não é menos verdade que podem avultar
em concreto por referência às exigências que a relação intersubjetiva patenteia. Vamos
por isso mais longe do que Hart na concretização do que é a sua role responsibility, não
4. HART, “Varieties of responsibility”, 347.
5. CANE, Peter. Responsibility in Law and Morality, Oxford, Portland Oregon, 2002, 31 s.
6. CANE, Peter. Responsibility in Law and Morality, 33.
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A RESPONSABILIDADE CONTRATUAL E A RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL
a preenchendo, apenas, com obrigações decorrentes de um acordo contratual ou de um
estatuto especial. Isso implica uma consideração acerca do sentido da responsabilida-
de, a convocar, af‌inal, o problema da fundamentação do direito e da sua realização em
concreto. É esse sentido – descoberto com apelo ético-axiológico – que nos permitirá
descobrir os sentidos da responsabilidade, ou seja, a articulação entre a role responsibility
e a liability, com importantes consequências do ponto de vista dogmático.
Esta relação entre uma esfera de dever e de responsabilidade leva-nos, ainda, a
questionar a cisão entre a responsabilidade delitual e a responsabilidade contratual,
já que a role responsibility de que se parte estende-se para lá da assunção contratual de
determinados deveres. Ora, ao fazê-lo, toparemos com um outros sentidos de responsa-
bilidade: a responsabilidade patrimonial, que daquela se aparta, bem com da responsabi-
lidade-repartição do risco, na qual se perde o cunho imputacional.
2. O SENTIDO MAIS DENSIFICADO DA RESPONSABILIDADE:
RESPONSABILIDADE PELO OUTRO E RESPONSABILIDADE PERANTE O
OUTRO
A responsabilidade civil não pode ser compreendida em termos meramente tecni-
cistas. Pelo contrário, a partir do momento em que justif‌icadamente compreendemos
que o direito não se reduz a um conjunto de normas, antes pressupondo uma intenção
de validade que se vem a descobrir numa concreta axiologia, e que a sua realização é
impensável sem a remissão da norma ou do instituto jurídico para o caso concreto, que
a reclama, e para os princípios em que se louva, perceberemos que a responsabilidade
civil há de vir pensada como projeção nas relações privatísticas de um princípio de res-
ponsabilidade que entronca na pessoalidade livre. É esse princípio de responsabilidade
que nos permitirá compreender os contornos do instituto civilístico.
O direito não se reduz, de facto, a um conjunto de normas. Pensar nesses termos
implicaria que f‌icássemos presos a um perturbador positivismo e, portanto, dependentes
da vontade, tendencialmente arbitrária, do decisor político. Haveremos, portanto, de
encontrar um fundamento para o ordenamento jurídico, que se vem a descobrir na ine-
liminável dignidade ética da pessoa humana, entendida como um ser livre e responsável.
Pensar na responsabilidade não é, portanto, viável sem se pensar na liberdade.
Esta ligação, aliás, sempre foi af‌irmada. Mas não nos moldes como a devemos conceber
atualmente.
No jusracionalismo inicial, o postular de uma série de direitos originais e imutá-
veis do homem, que seriam deduzidos dos grandes axiomas da razão humana, levou à
ideia de que qualquer dano que fosse perpetrado culposamente deveria ser ressarcido.
Na base destes direitos originários e imutáveis encontrávamos uma dada compreensão
da liberdade humana. Uma liberdade vista como liberdade negativa – uma liberdade
def‌inida pela correlativa determinação dos espaços sociais e de ação. O homem seria
livre para agir. E poderia fazê-lo ao abrigo da sua liberdade, como quisesse, desde que
se restringisse à sua esfera pessoal, só limitada no confronto com as esferas do outro. Se
nessa sua atuação lesasse outrem, ultrapassados que fossem os limites do seu direito,

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