Wrongful life actions em portugal, 20 anos depois

AutorDiogo Costa Gonçalves
Ocupação do AutorDoutor em Direito. Professor de direito
Páginas45-66
WRONGFUL LIFE ACTIONS EM PORTUGAL,
20 ANOS DEPOIS
Diogo Costa Gonçalves
Doutor em Direito. Professor de direito.
Sumário: 1. Wrongful pergnancy. 2. Wrongful birth e wrongful life. 3. A experiência portugue-
sa. 4. Cont.: os acórdãos do STJ, de 17-jan.-2013 e de 12-mar.-2015. 5. A inadmissibilidade
da pretensão à “não existência”. 6. A posição jurídica dos pais: wrongful pregnancy e dano
existencial. 7. Cont.: os casos de wrongful birth e wrongful life.
A vida constitui o primeiro e mais fundamental bem jurídico, pressuposto ôntico
e valorativo dos demais direitos de personalidade.
Poderá, todavia, a vida de alguém – para o próprio ou para terceiro – ser considerada
um dano: a frustração de um interesse juridicamente atendível?1
A questão coloca-se, naturalmente, no plano da responsabilidade civil. Ela interessa
na medida em que o dano-vida possa ser imputado a uma esfera jurídica diversa daquela
onde ocorreu (a título aquiliano ou contratual).
Fora deste horizonte problemático, a questão não releva para o jus civile.
Uma análise mais cuidada da jurisprudência permite identif‌icar vários tipos de
pretensões indemnizatórias fundadas na consideração da vida como um dano.
Em alguns casos, a vida indevida corresponde a uma gravidez indesejada (wrongful
pregnancy ou wrongful conception). A pretensão é sustentada pelos pais da criança nascida
e não desejada, em regra contra um médico ou centro clínico.
Nestes casos, não se reclama a frustração de um alegado direito ao aborto, mas sim
o insucesso de um procedimento contraceptivo, destinado a evitar a geração daquela
concreta vida que – não podendo os pais dispor sobre ela – terão que suportar económica
e emocionalmente. Nalguns casos, pode estar em causa também não a falha de procedi-
mento contraceptivo mas de um diagnóstico genético, por exemplo, que, a ter existido
ou a ter sido correto, determinaria a inexistência da gravidez.
Noutras hipóteses, a discussão centra-se numa violação do alegado direito ao
aborto (wrongful birth). A gravidez não foi indevida, indevido foi o nascimento. Os pais
(e, nalguns casos, o próprio) entendem que foi coartada a possibilidade de evitar o nas-
cimento daquela criança que, mercê da sua condição clínica ou das condições da mãe,
podia ter sido abortada.
1. O texto corresponde à nossa intervenção nas III Jornadas Luso-Brasileiro de Responsabilidade Civil, na Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra (07-nov.-2019).
Sobre a colocação do problema, por exemplo: WINTER, Thomas. “Bébé préjudice” und Kind als Schaden – Eine
rechtsvergleichende Untersuchung zur Haftung für neues Leben in Deutschland und Frankreich, 2002, 19 e ss.
DIOGO COSTA GONÇALVES
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A vida indevidamente nascida já não pode ser eliminada. A existência da criança
que podia não ter nascido, mas nasceu, é conf‌igurada como um dano, quer quanto aos
encargos materiais relacionados com o seu sustento, quer quanto aos aspetos não patri-
moniais associados à sua existência.
Por f‌im, encontramos casos de wrongfull life.
Muito próximos das hipóteses de wrongful birth, a vida indesejada coloca a tónica
não tanto na frustração do direito ao aborto mas na condição clínica da vida.
Em causa não está uma criança que não devia ter nascido, mas antes uma vida que
não merece ser vivida e que, por isso, é compreendida como um dano para o próprio e
para aqueles que a devem suportar (ainda que não a pudessem ou quisessem eliminar)2.
Alguns dos argumentos tipicamente discutidos nos casos de wrongfull life podem
encontrar-se em casos de wrongful birth: basta que a vida que não devia ter nascido seja,
af‌inal, uma vida que também não mereça ser vivida3.
Os termos wrongful pregnancy, wrongful birth e wrongfull life não conhecem um uso
técnico-jurídico. São conceitos muito f‌luidos, não raras vezes utilizados como sinónimos
(sobretudo wrongful birth e wrongfull life)4, e sem densidade dogmática5.
A sua distinção é útil apenas na medida em que permite a ilustração de vários ângulos
de um problema complexo, com numerosas implicações éticas e dogmáticas.
1. WRONGFUL PERGNANCY
I – O discussão acerca da possibilidade da vida ser um dano iniciou-se no último
quartel de séc. XX. O avanço da técnica, acompanhado dos pressupostos culturais da
revolução sexual dos anos 60, permitiu a divulgação do uso de fármacos contraceptivos
e o crescente recurso à realização de intervenções médicas de esterilização. Desenvol-
veram-se também meios de diagnóstico capazes de antecipar possíveis patologias em
futuras gravidezes.
As primeiras decisões conhecidas correspondem, portanto, a casos de wrongful
pergnancy6: por regra, erros médicos no aconselhamento ou implementação de técnicas
contraceptivas, dos quais resultou uma gravidez indesejada e o consequente nascimento
de uma criança.
2. Na ilustração conceptual de Paulo Mota Pinto, os casos de wrongful life corresponderiam sempre a pretensões da
própria criança: “Indemnização em caso de ‘nascimento indevido’ e de ‘vida indevida’ (wronful birth e wrongful
life), Direitos de Personalidade e Direitos Fundamentais – Estudos, 2018, 735-772, 737.
3. Sobre esta sobreposição de argumentos, veja-se Lord Rodger of Earlsferry, “Wrongful birth in United Kingdom
Law”, Wrongful birth en Wrongful life (Kortmann/Hamel), 2004, 43-52 (a obra é organizada por holandeses, da
Universidade Católica de Nijmegen).
4. LEJEUNE, Christiane. Wrongful life – Das Kinde als Vermögensschaden, 2009, 4-6. Entre nós, veja-se Paulo Mota
Pinto, “Indemnização em caso de ‘nascimento indevido’ ...” cit., 735-739.
5. PINTO, Paulo Mota. “Indemnização em caso de ‘nascimento indevido’ ...” cit., 738.
6. STEFANELLI, Francesca. Famiglia e responsabilità civile (Paolo Cendon), 2014, 107 e ss.

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