Em busca do interesse público perdido: As quatro dimensões de um instituto constitucionalmente domesticado

AutorBruno Arcanjo
Páginas95-128
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Em busca do interesse público perdido: As quatro dimensões de um
instituto constitucionalmente domesticado
Em busca do interesse público perdido:
As quatro dimensões de um instituto
constitucionalmente domesticado
Bruno Arcanjo1
Resumo
Ao lado da legalidade, a supremacia do interesse público sobre o
privado é tradicionalmente considerada um dos alicerces do direito
administrativo, servindo de substrato axiológico para uma variedade
de institutos de direito público, como o poder de polícia. Entretanto,
têm se multiplicado as vozes críticas à subsistência desse princípio no
estado democrático de direito, que é calcado na centralidade dos di-
reitos fundamentais. Alguns críticos propõem a releitura do princípio,
para adequá-lo ao novo contexto constitucional. Outros advogam a
sua extinção. Por sua vez, os defensores do princípio acusam os críti-
cos de incorrer numa espécie de “falácia do espantalho”, afirmando,
basicamente, que ele nunca foi tão autoritário assim como o descre-
vem. Este é o objetivo do presente estudo: analisar a subsistência de
um “princípio” do interesse público no constitucionalismo democrá-
tico, e, a depender das conclusões obtidas no ponto anterior, deter-
minar o seu conteúdo. Para esse fim, a exposição será dividida em
quatro tópicos. No primeiro, serão analisadas as origens e o conheci-
mento tradicional a respeito da supremacia do interesse público. No
segundo, será apresentada a crítica ao princípio e a crítica da crítica.
No terceiro e no quarto, será proposto um modelo teórico de interes-
se público, em sua versão constitucionalmente domesticada.
Palavras-chave: Supremacia do interesse público sobre o privado.
Estado democrático de direito. Direitos fundamentais. Constitu-
cionalidade.
Abstract
Besides legality, the supremacy of public interest over the
private interest is traditionally considered one of the bedrocks of
1 Especialista em Direito Administrativo e em Direito Processual Civil (UCAM/RJ). Mestrando
em Direito Público (UERJ). Procurador da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB).
Advogado autônomo. E-mail: bruno.arcanjo@adv.oabrj.org.br.
Transformações do Direito Administrativo:
O Estado Administrativo 30 anos depois da Constituição de 1988
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Administrative Law, serving as axiological substrate for a variety
of public law institutes, for example, police power. Meanwhile, the
criticism about the subsistence of this principle in a democratic
state ruled by law is crescent, since it is oriented by the centrality of
human rights. Some critics suggest a rereading of the idea, aiming to
harmonize it with the new constitutional context. Others advocate
its extinction. On the other side, defenders of the principle accuse
the critics of using a straw man argument, stating, basically, that
it was never as authoritarian as they describe. The purpose of this
study is: analyze the subsistence of a “principle” of public interest in
the democratic constitutionalism, and, depending on the results of
the previous topic, determine its meaning. The paper is organized in
four topics. In the first, the origins and the conventional knowledge
about the supremacy principle are analyzed. In the second, are
presented the critics to the principle and the answers to these critics.
A theoretical model for the constitutionally domesticated principle
is presented on the third and fourth topics.
Keywords: Supremacy of public interest over private. Democratic
state ruled by law. Human basic rights. Constitutionality.
1. Introdução
Os séculos XVIII e XIX foram palco de revoluções que provoca-
ram profundas transformações políticas no mundo. Possivelmente,
a revolução francesa, cujo marco temporal é o ano de 1789, foi a
que com mais intensidade buscou distanciar o novo regime daquele
que acabara de se derrubar. Se, no Antigo Regime, a sociedade era
dividida em estamentos, instituiu-se a igualdade formal de todos
perante a lei. Se a religião desempenhava papel importante na vida
pública, adotou-se um regime de separação absoluta entre estado e
Igreja, até com certa dose de hostilidade ao fato religioso2. É a esse
2 Diferentemente do regime adotado pelos Estados Unidos da América – EUA. Na sua origem,
a revolução americana foi motivada, entre outros fatores, pelo descontentamento com o
tratamento dispensado pela Coroa Britânica às treze colônias, especialmente em matéria
tributária. Portanto, o rompimento que lá se buscava era de caráter mais pragmático do que
axiológico. Ao contrário, os revolucionários franceses almejavam uma ruptura profunda com
o estado de coisas então vigente. E como a religião católica também fazia parte desse estado
de coisas, ela também foi alvo do furor revolucionário. Assim, ao contrário do ocorrido nos
EUA, a revolução francesa ostentou caráter acentuadamente ideológico. Em última análise,
buscava-se substituir a fé religiosa por uma fé política. ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade
religiosa e o estado. Coimbra: Almedina, 2002. p. 74.
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Em busca do interesse público perdido: As quatro dimensões de um
instituto constitucionalmente domesticado
mesmo período que se tributam outras conquistas republicanas,
como o advento do estado de direito e a tripartição de Poderes.
Quase cem anos mais tarde, em 1873, nasceria mais um fruto do es-
pírito revolucionário: o direito administrativo3, que seria responsável
pela submissão da Administração Pública aos ditames da lei4.
Diferentemente do regime da common law, em que Estado e in-
divíduo frequentemente estão em pé de igualdade (horizontalidade),
o sistema do droit administratif é fortemente caracterizado por uma
relação de desigualdade entre o ente estatal e seu súdito (verticalida-
de)5. Embora tenha raízes na antiguidade greco-romana, o princípio
da supremacia do interesse público sobre o privado, ao lado do prin-
cípio da legalidade, é tradicionalmente considerado um dos grandes
alicerces do direito administrativo6, servindo até hoje de substrato
axiológico para uma variedade de institutos de direito público, sendo
o poder de polícia o mais notável entre eles. O conceito clássico de
poder de polícia praticamente coincide com essa noção de suprema-
cia do interesse público: o poder conferido ao estado para restringir a
liberdade e a propriedade, em benefício do interesse coletivo7.
Há certo tempo, entretanto, têm se multiplicado as vozes críti-
cas à subsistência de um princípio de supremacia no âmbito de um
Estado democrático de direito, que é calcado na centralidade dos
direitos fundamentais. Alguns desses críticos propõem uma releitu-
ra do princípio, para adequá-la ao novo contexto constitucional. Ou-
tros advogam a sua própria extinção, reputando ser incompatível
com o princípio democrático uma superioridade hierárquica, ainda
que prima facie, do interesse público sobre o privado.
3 Trata-se do caso Blanco, considerado a certidão de nascimento do direito administrativo
francês. Nele, o Tribunal de Conflitos, responsável por dirimir conflitos de competência entre
as jurisdições comum e administrativa, definiu a competência do Conselho de Estado para
julgar caso envolvendo atropelamento causado por vagonete de uma empresa estatal de
manufatura de tabaco, em virtude da prestação de um serviço público, que reclamaria a
aplicação de regras diferentes daquelas aplicáveis aos particulares.
4 Como será visto a seguir, existem críticas à suposta gênese garantista do direito administrativo.
5 Para uma análise clássica dos dois regimes, embora tendencialmente mais benevolente em
relação à common law: DICEY, Albert. Introduction to the study of the law of the constitution.
London: Macmillan, 1915. p. 213-267. Analisando a influência dos dois modelos sobre o tema do
ato administrativo, vide: MOTTA, Fabrício. O ato administrativo no direito inglês. Revista de
direito administrativo e constitucional, Belo Horizonte, ano 3, n. 11, jan./fev./mar. 2003, p. 71-99.
6 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo do regime jurídico-administrativo e seu valor
metodológico. Revista de direito administrativo, Rio de Janeiro, v. 89, 1967, p. 9-11.
7 MEIRELLES, Hely Lopes. Poder de polícia e segurança nacional. Revista dos Tribunais, São
Paulo, v. 61, n. 445, nov. 1972, p. 289; TÁCITO, Caio. O poder de polícia e seus limites. Revista
de direito administrativo, Rio de Janeiro, v. 27, 1952, p. 8.

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