A Garantia de Emprego contra Dispensa Discriminatória do Portador de HIV/AIDS

AutorMaria Cecilia de Almeida Monteiro Lemos - Rejane Alves da Silva Brito - Thiago Vilela Dania - Valéria de Oliveira Dias
Páginas196-205

Page 196

Introdução

A garantia de emprego contra dispensa discriminatória do portador de HIV/AIDS é um tema que ganhou relevância com o aumento de casos da doença no final do século XX. Diante da realidade social que colocava centenas de trabalhadores infectados na rua e incumbido de promover a pacificação dos conflitos decorrentes das relações de trabalho, o Tribunal Superior do Trabalho, responsável pela uniformização da jurisprudência oriunda dos tribunais regionais de todo o Brasil, deparou-se com decisões baseadas em diferentes interpretações sobre o alcance dos direitos e garantias institucionais1 relacionadas

Page 197

ao tema. Com isso, editou-se em 27 de outubro de 2012 a Súmula n. 4432, que estabelece a presunção de dispensa discriminatória para o empregado portador de HIV/AIDS ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito e determina a reintegração do trabalhador ao emprego.

O presente artigo, inicialmente, traz um histó-rico do surgimento e evolução da AIDS - Síndrome da Imunodeficiência Adquirida - e o impacto social gerado pela sua propagação, com ênfase para os dados estatísticos da doença, inclusive sua presença no mercado de trabalho.

Em seguida, trata sobre o direito à não discriminação, da respectiva previsão legal e da relevância para o estabelecimento da garantia de emprego para o trabalhador com HIV/AIDS.

Colaciona-se a jurisprudência do TST sobre o tema para demonstrar as diferentes hipóteses de dispensa de empregado com HIV/AIDS e a conformação das garantias institucionais e dos conteúdos essenciais encontrados no ordenamento jurídico que possibilitaram ao trabalhador portador do vírus a garantia de emprego contra despedida discriminatória.

Preceitos como o valor social do trabalho, o direito à igualdade, à não discriminação, à saúde e à vida com dignidade balizam as decisões que asseguraram a garantia de emprego aos infectados despedidos por discriminação. Entretanto, considerações sobre o direito à livre-iniciativa, os princípios gerais da administração pública e o caráter sinalagmático do contrato de trabalho proporcionaram a construção de diferentes interpretações constitucionais sobre o alcance da garantia de emprego do trabalhador portador de HIV/AIDS.

As decisões apresentadas consideraram os direitos fundamentais constitucionalizados, a legislação ordinária e as Convenções Internacionais sobre os quais se construiu um complexo de garantias institucionais que, independentemente da existência de uma legislação positivada, proporcionam a reintegração de trabalhadores doentes discriminados e a manutenção dos conteúdos essenciais dos direitos fundamentais da pessoa humana.

A partir do arcabouço de garantias institucionais e conteúdos essenciais apresentados, conclui-se pela invalidade da dispensa discriminatória do portador de HIV/AIDS, como medida de garantia de respeito à dignidade humana e aos preceitos fundamentais da Constituição brasileira.

1. Considerações sobre o vírus HIV e sobre a AIDS

As doenças sempre ensejaram práticas discriminatórias. Dentre as epidemias que marcaram a humanidade, a lepra foi a que causou maior pavor. A Igreja, na Idade Média, assumiu o encargo de combatê-la e determinou o isolamento dos leprosos. Essa segregação tinha regras: o leproso se vestia com uma mortalha, ouvia uma missa solene para os mortos, recebia a terra que era jogada sobre ele e, em seguida, os parentes o conduziam até o leprosário que se encontrava fora dos limites da cidade em que vivia. A exclusão do convívio social persistiu até o início do século XX3.

Com o exemplo, fica claro que, quando se trata de doença incurável e contagiante, a discriminação se intensifica. A estigmatização social que existiu em relação à lepra se assemelha com a vivida pelos portadores do HIV/AIDS. A AIDS foi considerada o mal do século. A desinformação sobre a doença, provavelmente, é a fonte dos preconceitos. A mídia relatou casos em que o doente foi expulso de casa, da escola, do emprego, e médicos se recusaram a operar o portador do vírus, por temor4.

Segundo estimativas da OMS e ONUSIDA, 34 milhões de pessoas viviam com o HIV no final de 2011. Até o referido momento, o vírus já havia matado mais de 25 milhões de pessoas5.

Page 198

No Brasil, o primeiro caso de AIDS foi diagnosticado em 1980. O reconhecimento da doença, contudo, se deu em 1982. Até 2010, foram notificados 592.914 casos, de acordo com o Ministério da Saúde6.

Os indivíduos portadores do HIV/AIDS possuem entre 20 e 49 anos, ou seja, estão em plena idade produtiva7 e sofrem "um degradante ciclo discriminatório que pode abranger, inclusive e principalmente, o seu ambiente de trabalho"8. Luiz Otávio Linhares Renault afirma:

"De todas as discriminações talvez as de maior grau de dificuldade de superação sejam as que, como a AIDS, acarretam a perda do emprego: sem emprego, não há salário; sem salário não há como enfrentar-se com dignidade a doença. E o círculo vicioso não para aí."9

Diante dessa realidade, pretende-se analisar como o ordenamento jurídico e a jurisprudência pátria têm contribuído na proteção dos portadores do HIV/AIDS, especialmente nas relações trabalhistas, como forma de dar eficácia às garantias constitucionais relacionadas ao direito a uma existência digna.

2. A não discriminação por motivo de saúde

Jorge Luiz Souto Maior define o vocábulo "discriminar" como distinguir, discernir coisas, pessoas, ideias, em conformidade com suas características próprias e critérios bem definidos10. É necessário saber quando uma discriminação pode ou não pode ser aceita. A discriminação analisada neste estudo constitui uma distinção juridicamente não aceita.

Firmino Alves Lima define um ato discriminatório como uma "distinção desfavorável fundada em um determinado motivo, de cunho antijurídico e desprovida de razoabilidade e racionalidade". No que se refere às relações de trabalho, o citado doutrinador formula o seguinte conceito para discriminação:

"há discriminação nas relações de trabalho quando um ato ou comportamento do empregador, ocorrido antes, durante e depois da relação de trabalho, implica uma distinção, exclusão, restrição ou preferência, baseado em uma característica pessoal ou social, sem motivo razoável e justificável, que tenha por resultado a quebra do igual tratamento e a destruição, o comprometimento, o impedimento, o reconhecimento ou o usufruto de direitos e vantagens trabalhistas asseguradas, bem como direitos fundamentais de qualquer natureza, ainda que não vinculados ou integrantes da relação de trabalho."11

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, escrita pouco tempo depois da derrota do nazismo em 10 de dezembro de 1948, traz importantes dispositivos sobre o assunto. No art. I, afirma que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, e no art. II, dispõe sobre a igual capacidade para gozar os direitos e as liberdades previstas na Declaração, sem distinção de qualquer espécie. No art. VII, novamente assevera a igualdade de todos perante a lei, bem como igual proteção contra qualquer discriminação e qualquer incitamento à discriminação. No art. XXIII, afirma que todos têm direito ao trabalho sob condições justas e favoráveis que assegure uma remuneração justa e satisfatória para o sustento próprio e familiar como forma de garantir uma existência compatível com a dignidade humana12.

O princípio da não discriminação é acolhido pelo ordenamento jurídico brasileiro. A Carta Magna de 1988 ampliou, sobremaneira, as medidas proibitivas de condutas discriminatórias. Algumas delas direcionadas especificamente à relação de trabalho, como as contidas no art. 7º. Outras, por sua gene-ralidade, abarcam também as questões próprias da relação empregatícia, como as normas constantes do art. 5º13.

Page 199

A Constituição vigente prevê como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, no art. 3º, inciso IV, "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". O art. 5º, inciso XLI, da Constituição Federal complementa o aludido objetivo fundamental asseverando que "a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais". No rol de direitos dos trabalhadores, a Carta Magna proíbe diferenças de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil, bem como de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência (art. 7º, incisos XXX e XXXI).

Na tentativa de disciplinar a matéria, foi editada a Lei n. 9.029/95 que proíbe a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para acesso à relação de emprego ou a sua manutenção por motivos de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade. Além disso, pode-se citar a Convenção n. 111 da OIT, ratificada pelo Brasil, que veda discriminação no acesso à formação profissional, à admissão no emprego e às condições de trabalho por motivo de raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social.

Nesse ponto, é importante notar que, dentre todas as normas citadas, não há nenhuma menção à proibição de discriminação quando o motivo é o estado de saúde. Pertinente, portanto, o questionamento de Alice Monteiro de Barros: "De que adiantariam as normas internacionais e constitucionais proibitivas de discriminação, se não colocamos no tempo ou a integramos na realidade?"14

Nesse contexto, a questão da discriminação do portador de HIV/AIDS no âmbito do trabalho ganha relevância e o Poder Judiciário, mesmo diante do silêncio...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT