Novas Tecnologias e as Repercussões do art. 6º da CLT

AutorMaria Cristina Irigoyen Peduzzi
Ocupação do AutorMinistra do Tribunal Superior do Trabalho. Presidente Honorária da Academia Nacional de Direito do Trabalho. Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB.
Páginas118-123

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A sociedade mundial tem passado, nas últimas décadas, por uma profunda transformação estrutural viabilizada pela tecnologia da informação. A partir da década de 1970, a popularização da informática e o desenvolvimento de redes de comunicação entre computadores induziram uma revolução nas telecomunicações que remodelou e tornou mais complexas a cultura, as formas de integração social e a própria economia global.

Não é por acaso que o sociólogo espanhol Manuel Castells, em sua já clássica obra A sociedade em rede, de 1996, identificava nesse processo elementos de afirmação de uma nova economia, caracterizada pelo conceito de ‘rede’, que tem como exemplo maior a Internet1. Mas a rede é mais do que a integração de computadores, que são apenas a ferramenta tecnológica usada para reunir todos os elementos do sistema produtivo, que se tornaram verdadeiramente transnacionalizados: o mercado financeiro, nessa nova realidade, só pode ser pensado a partir de uma perspectiva global, assim como os sistemas de produção e o comércio de bens e serviços.

A "rede", segundo a tese de Castells, transformou-se no paradigma do sistema econômico pós-industrial. As empresas modificaram sua organização interna para adaptar-se à imprevisibilidade das novas transformações econômicas e tecnológicas. Se antes eram caracterizadas por uma rígida e burocrática hierarquia, as empresas agora passam a adotar um modelo mais horizontalizado, que se estrutura a partir de redes de equipes que buscam, como conjunto, executar seus objetivos econômicos. A própria empresa se torna, nesse sentido, uma rede descentralizada, mais preocupada com a realização de seus objetivos econômicos do que com a observância da hierarquia funcional. Nessa realidade, a conformação da estrutura organizacional torna-se mais fluida e transitória, já que as equipes de trabalho podem ser desmontadas e realocadas tão logo encerrem uma determinada tarefa e iniciem outra, reconfigurando-se da maneira mais eficiente possível2.

A própria base territorial das empresas se torna um elemento da rede, transferível para a localidade mais conveniente da perspectiva econômico-

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-financeira. Não é por acaso, portanto, que nas últimas décadas houve uma migração de unidades fabris dos países desenvolvidos para países em que os impostos são menores e os direitos trabalhistas ainda não são uma realidade. Muitas empresas brasileiras, inclusive, já têm fábricas operacionais na China, que se desenvolveu economicamente, entre outras razões, por oferecer menores custos operacionais às organizações que lá se instalaram, parcialmente em decorrência da precarização dos direitos trabalhistas.

Na economia pós-industrial, o próprio trabalhador é concebido como parte da rede e sua função passa a incorporar esses elementos de transitoriedade e horizontalidade que caracterizam a organização empresarial. Assim como as empresas, os empregados também se tornaram globais, tanto em razão de processos migratórios que os levam a buscar melhores condições de vida, quanto em decorrência das novas tecnologias, que viabilizam a prestação de serviços em localidade diversa daquela em que a empresa possui sede ou escritório. É ilustrativa, nesse sentido, a situação dos indianos que trabalham, no seu país de origem, para call centers de empresas europeias ou norte-americanas3, assim como a de programadores de software que prestam, por meio de instrumentos de teletrabalho, serviços para clientes de diversas nacionalidades mediante contato por meio exclusivamente eletrônico.

Além disso, as relações de trabalho também têm se tornado mais flexíveis, gerando o fenômeno que Ursula Huws denomina de cibertariado4. A economia taylorista, caracterizada por uma relação de emprego estável que durava décadas, tem sido paulatinamente substituída por um modelo mais transitório, no qual a mudança de empregos se torna muito mais comum na vida profissional. Como reconhece Stewart Schwab, professor de Direito do Trabalho da Universidade de Cornell, essa flexibilidade tem decorrido não apenas do interesse empresarial, mas da demanda dos próprios trabalhadores, que podem assim auferir ganhos maiores do que os propiciados pela organização taylorista5. A flexibilidade nas relações de trabalho também afeta outros domínios, como a maior liberdade quanto ao tempo de jornada de trabalho e quanto ao local da prestação de serviço, que pode ser efetuado tanto no ambiente empresarial quanto na residência do próprio empregado6.

Como denota essa descrição do modo pelo qual a tecnologia tem afetado as relações econômicas e trabalhistas, colocam-se novos desafios ao Direito do Trabalho, que precisa repensar as maneiras tradicionais de lidar com os conflitos decorrentes de relações de trabalho extremamente mais complexas do que eram há dez ou quinze anos.

O reconhecimento de que as relações trabalhistas têm passado por profundas transformações em decorrência das exigências da nova economia mundial não significa abrir mão de preceitos caros à tradição laboral, como o princípio da proteção do trabalhador. Continua a ser missão da Justiça do Trabalho a garantia de relações trabalhistas fundadas na dignidade da pessoa humana, protegendo o empregado do aviltamento e da precarização de seu labor.

Todavia, é preciso reler esse princípio à luz da nova realidade, sob pena de seu significado quedar-se obsoleto, sem utilidade para relações econômicas novas. Não é possível, como uma certa leitura dessas transformações poderia induzir, enxergar apenas os elementos negativos dessa realidade e rejeitá-la por essa razão7.

É preciso reconhecer os efeitos positivos das transformações no sistema produtivo, que podem implicar melhorias para as condições de trabalho e mesmo para as relações entre empregados e empregadores. A superação do paradigma marxista que enxerga essa relação apenas sob o prisma da conflituosidade e do eterno antagonismo entre capital e trabalho precisa ser incorporada na estrutura teórica do Direito do Trabalho.

Embora empregados e empregadores muitas vezes tenham interesses antagônicos, não é possível desconsiderar os muitos interesses em comum que permeiam as relações trabalhistas.

Essa não é uma tese nova, aliás, ou uma mera afirmação otimista: a legislação trabalhista portuguesa

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já previa desde 1969, no art. 18 da LCT, o princípio da mútua colaboração na relação de trabalho, mantido no art. 126 do atual Código do Trabalho com a seguinte redação: "na execução do contrato de trabalho as partes devem colaborar na obtenção da maior produtividade, bem como na promoção humana, profissional e social do trabalhador". Como afirma o doutrinador português Bernardo da Gama Lobo Xavier, esse princípio não nega a conflituosidade imanente às relações trabalhistas, mas enfatiza que a própria natureza dessa relação pressupõe que ambas as partes conjugam esforços para alcançar objetivos comuns8. Também no Canadá tem-se reconhecido a necessidade de mudança do...

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