A Denúncia da Convenção n. 158 da OIT como Retrocesso Social: Desdobramentos Materiais dos Passos de Arnaldo Süssenkind

AutorDaniela Muradas Reis - Pedro Augusto Gravatá Nicoli
Ocupação do AutorMestre em Filosofia do Direito e Doutora em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais - Mestre e Doutorando em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais
Páginas27-34

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1. Quando a legitimidade do mestre encontra a bandeira do humanista: a análise de Süssekind da denúncia da Convenção n 158 da OIT

Se ser grande é abraçar uma grande causa, Arnaldo Lopes Süssekind fez-se um gigante. Não apenas por todos os relevantes cargos públicos que ocupou, mas por ter na vida empunhado a bandeira da humanização das relações de trabalho e, em particular, a defesa do direito ao emprego. Com profundo senso humanista, compreendeu o humano como o centro da ordem econômica e social, a exigir fórmulas impeditivas da dispensa, de modo a vedar o descarte de trabalhadores no jogo egoístico de mercado.

Desde a generalização dos direitos dos trabalhadores brasileiros com a Consolidação das Leis do Trabalho, trabalho histórico que realizou na comissão que integrou juntamente com Segadas Vianna, Oscar Saraiva, Luiz Augusto Rego Monteiro e Dorval Lacerda Marcondes, e que consolidou a estabilidade em matéria de emprego como regra geral1, o jovem

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jurista carioca já prenunciava sua carreira dedicada aos mais nobres valores juslaborais e ao regime de proteção ao emprego.

Sua resistência como Ministro do Trabalho ao regime flexível de dispensa, que posteriormente veio a se instalar no Brasil pelo regime do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), suas inúmeras decisões emblemáticas como Ministro do Tribunal Superior do Trabalho e a defesa universal de sistemas de garantias de emprego na Organização Internacional do Trabalho (OIT), onde atuou como integrante da Comissão de Peritos, demonstram o compromisso e a coerência de toda sua longeva vida com essa nobre missão.

E se a vida do homenageado conta a história do próprio Direito do Trabalho brasileiro e dos regimes de proteção ao emprego, no post mortem seu legado lança as luzes para o futuro da regulamentação da proteção contra a dispensa arbitrária. Destacaremos neste modesto texto uma das últimas de suas lutas: a invalidade da denúncia da Convenção n. 158 da Organização Internacional do Trabalho.

Aprovada na 68ª reunião da Conferência Inter-nacional do Trabalho em Genebra, no ano de 1982, a Convenção 158 entrou em vigor no plano internacional em 23 de novembro de 1985. Já muito conhecida dos fóruns de debate em matéria justrabalhista no país, a Convenção tem como objetivo essencial proteger a relação de emprego, vedando as dispensas imotivadas e visando balancear as potestades excessivas para o polo empregador no término do contrato de trabalho.

Arnaldo Süssekind se debruçou sobre o tema da Convenção n. 158, com o cuidado e profundidade que são marcas de seu trabalho, durante algumas ocasiões2. Percebia muito claramente ali algo de fundamental: a Convenção garante um nível de segurança no emprego compatível com os desenvolvimentos internacionais e constitucionais na proteção ao trabalhador em sua dimensão humana. E se coloca como questão estratégica na tentativa de equilibrar e humanizar a dinâmica de forças no mundo do trabalho. Assim, em suas análises, concluiu pela autoaplicabilidade dos conteúdos da Convenção no Brasil, pela sua plena compatibilidade com a Constituição brasileira e pelo completo descabimento da denúncia feita pelo Poder Executivo nacional.

Uma de suas manifestações mais relevantes nesse sentido foi o parecer que produziu a pedido da Central Única dos Trabalhadores (CUT) em 1997, que instruiu a ação direta de inconstitucionalidade aviada pela CUT e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) perante o Supremo Tribunal Federal (ADIn n. 1.625), para questionar a denúncia promovida pelo Poder Executivo brasileiro.

Nesta ocasião, Süssekind noticiou a ratificação pelo Brasil da Convenção n. 158 em 1995 e sua denúncia em 1996, refletindo sobre a forma através da qual tal denúncia foi operacionalizada. Destacou a complexidade do procedimento de ratificação das Convenções da OIT, bem como a fundante distinção entre vigência no plano internacional e nacional, passando, então, a refletir sobre o procedimento de denúncia das Convenções. Em sua análise, Süssekind detalha seu lúcido posicionamento no sentido de que o ato de denúncia é uma expressão da vontade do Estado (e não do governo, do Poder Executivo), incluindo os "segmentos configuradores de Nação, como o dos trabalhadores e o dos empregadores, os quais, juntamente com os governos, formam o tripartismo que fundamenta e caracteriza a vida dessa entidade internacional [a OIT]"3.

Resgatando a centralidade do diálogo social e retomando, ainda, a Convenção n. 144 da OIT, passa diretamente à análise do Decreto n. 2.100, de 20 de dezembro de 1996, pelo qual o governo brasileiro pretendeu revogar a Convenção n. 158. Para Süssekind, a despeito do fato de que tal denúncia ter sido formalizada perante a OIT não afasta a conclusão de que não teriam existido consultas efetivas aos atores tripartites, em caminhar claramente viciado. Retoma, ainda, as matrizes estruturais da denúncia de tratados no Direito Público, concluindo pela inadequação da revogação por ato do Poder Executivo, diante da complexidade do ato de ratificação, ultimando, com especial clareza: "ato jurídico complexo deve ser revogado da mesma forma como foi praticado"4.

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Em resumo, a irretocável visão de Arnaldo Süssekind liga-se, essencialmente, à forma pela qual se expressou a vontade do Estado de se desvincular da Convenção n. 158, incompatível com o ato de ratificação, feito em regime dialogal e complexo. A esta visão não parece razoável pretender nenhum retoque, razão pela qual o que se almeja neste estudo ser uma adição reflexiva, que evidencia também o caráter material da inadequação da denúncia da Convenção n. 158, a ser, então, apresentada sob a perspectiva do principio da vedação do retrocesso5.

2. O princípio da vedação do retrocesso social

O princípio da vedação do retrocesso social enuncia serem insusceptíveis de rebaixamento os níveis sociais já alcançados e protegidos pela ordem jurídica, atuando em múltiplas dimensões. De um lado, pode-se destacar seu caráter estático, em que se supõe a efetividade dos direitos sociais já assegurados pela ordem jurídica. Em perspectiva dinâmica, de outro tanto, o princípio refere-se à impossibilidade de modificação do status quo em sentido negativo, sendo correlato lógico do princípio de progresso da proteção à pessoa humana, com a melhoria das condições sociais, mediante o aperfeiçoamento da ordem jurídica6.

Deste modo, o princípio do não regresso mantém interface com o princípio da norma mais favorável, princípio fundamental do Direito do Trabalho, bem como é consectário do princípio da progressividade dos direitos econômicos, sociais e culturais, princípio de relevo no campo temático do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Na formulação de J. J. Canotilho, o princípio da vedação do retrocesso comporta o seguinte conteúdo normativo:

"O núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa anulação, ‘revogação’ ou ‘aniquilação‘ pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade do legislador tem como limite o núcleo essencial já realizado."7

Esta formulação é a razão pela qual o princípio do não retrocesso se faz tão pertinente na discussão da denúncia da Convenção n. 158 da OIT, especial-mente na perspectiva de sua materialidade. Para além dos obstáculos formais de validade do Decreto Presidencial n. 2.100/96, que deu executoriedade à denúncia da Convenção n. 158 da Organização Internacional do Trabalho - tão precisamente tratados por Arnaldo Süssekind -, a ausência de um esquema compensatório de proteção contra a dispensa imotivada no Brasil representa um obstáculo substancial a tornar inviável a denúncia feita. Esse direcionamento fica bastante evidente quando se analisa a afirmação histórica do princípio do não retrocesso, a evidenciar o sentido de progressividade necessária em matéria de proteção da pessoa humana, o que, de modo algum, é afastado ou relativizado pelo regime de denúncias no plano internacional.

3. Origem e consolidação do princípio da vedação do retrocesso social

Como princípio destacado, a vedação do retrocesso tem sua gênese no Direito Internacional dos Direitos Humanos, na formulação do princípio da progressividade e não retrocesso da proteção à pessoa humana. Na lapidar passagem de Fábio Konder Comparato:

"A consciência ética coletiva [...] amplia-se e...

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