Prestação Jurisdicional e Racionalidade - as Ações Coletivas na Justiça do Trabalho

AutorDouglas Alencar Rodrigues
Ocupação do AutorMinistro do Tribunal Superior do Trabalho. Mestre em Direito (PUC-SP). Professor Universitário.
Páginas303-313

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Introdução

A história da humanidade registra a passagem de pessoas ilustres cujas realizações e legados influenciaram de forma decisiva os destinos das sociedades que integraram. Entre nós, Arnaldo Süssekind compõe esse rol de notáveis em razão de sua destacada atuação na construção e defesa do sistema brasileiro de regulação das relações individuais e coletivas de trabalho. Com sua visão humanista, Süssekind esteve à frente da grande maioria dos debates que marcaram a história dos direitos sociais no Brasil, mantendo-se permanentemente engajado na luta em defesa da Justiça social e do valor maior da dignidade da pessoa humana. Ao lado de juristas destacados, Süssekind compôs a histórica comissão constituída por Getúlio Vargas para forjar o modelo normativo brasileiro de relações individuais e coletivas de trabalho, bem assim, os respectivos sistemas de composição de conflitos. O trabalho produzido por essa comissão de notáveis, traduzido na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), mantém intactos até o presente os seus principais pilares de sustentação, apesar das inúmeras mudanças socioeconômicas vivenciada no Brasil ao longo dos anos.

Confirmando a tese de que nenhum saber pode ser pleno e efetivo se não conectado à realidade concreta da vida, Arnaldo Süssekind atuou nas várias esferas do mundo jurídico, como Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Advogado e Consultor Jurídico. No plano internacional, na condição de membro da Comissão de Peritos da Organização Internacional do Trabalho (OIT), também ofereceu marcante contribuição à causa dos direitos sociais. Compôs os quadros de associados da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e da Academia Ibero-Americana de Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social. Nos últimos anos de sua prolífica existência, marcada por uma produção intelectual de expressiva densidade científica, elaborou inúmeros pareceres sobre temas jurídicos relevantes e atuou como Consultor Jurídico da Companhia Vale do Rio Doce.

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1. Breve exame do "estado da arte"

A experiência e a história demonstram que toda realização humana jamais está definitivamente concluída. Com base na celebrada lição de Heráclito - para quem "Tudo flui, nada persiste, nem permanece o mesmo" -, é preciso ter presente que o dinamismo e a mudança fazem parte da natureza, das instituições, das pessoas e das relações humanas. Aliás, como afirmou há mais de dois mil e quinhentos anos o filósofo de Éfeso, a única regra universal infensa à mudança, em todos os tempos e lugares, é precisamente a de que apenas a mudança é permanente e inevitável.

No universo das relações humanas, que constitui o objeto da disciplina jurídica, a revisão dos sistemas normativos busca atender as novas demandas que emergem das complexas e sempre dinâmicas realidades. No campo dos direitos sociais, segundo a tradição do constitucionalismo social que consagra as ideias de "aquisição evolutiva" e proibição do retrocesso, apenas são admissíveis as inovações voltadas à ampliação dos níveis mínimos de proteção já inscritos na legislação vigente. A importância do trabalho, que representa nas sociedades capitalistas o principal meio de subsistência e de realização das vocações e potencialidades humanas, foi expressamente reconhecida na Carta Magna de 1988, que, além de enunciar os ideais da dignidade da pessoa humana e valorização social do trabalho, como princípios fundamentais da nossa organização social (CF, art. 1º, III e IV), anotou expressamente o primado do trabalho e da Justiça Social sobre a ordem econômica (CF, art. 170). Fundou nossa Carta Maior um mode-lo de organização econômico-social extremamente rico e moderno, qualificado parte da doutrina como "capitalismo humanista"1.

No Brasil, o modelo normativo de relações de trabalho, idealizado no contexto histórico do Estado Novo, jamais se apresentou imune a aperfeiçoamentos. Apesar de suas inúmeras virtudes, sobretudo diante do contexto social e econômico que justificou sua edição, esse sistema de regulação social acabou marcado por alguns vícios originais que o decurso do tempo vem grafando com traços cada vez mais expressivos.

É inegável que existem pontos essenciais em que alterações se fazem urgentes e necessárias: basta notar que o sistema de organização sindical ainda hoje preserva postulados incompatíveis com as noções de liberdade e autonomia sindicais, como o são as travas da unicidade sindical e do imposto sindical compulsório, em clara e frontal contradição com normas da Organização Internacional do Trabalho2 - 3.

Também no campo dos conflitos coletivos de trabalho, a denominada "jurisdição normativa", expressão que encerra em si inescusável paradoxo4,

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representou mecanismo de restrição substancial da autonomia dos atores coletivos, sujeitando-os de forma objetiva e automática ao controle do Estado, além de produzir nefastos e antipedagógicos efeitos sobre o processo de amadurecimento e evolução das relações entre o capital e o trabalho.

Passadas tantas décadas de aplicação desse modelo, a recente tentativa de sua superação, processada com o advento da Emenda Constitucional n. 45, de 2004, parece exigir novas reflexões, pois o modelo de "arbitragem oficial", criado a partir da exigência de comum acordo para a instauração da instância coletiva (art. 114, § 2º, da CF), sugere agravamento do desequilíbrio presente na correlação de forças entre atores coletivos patronais e de trabalhadores.

Ainda que o sistema de intervenção estatal na solução dos conflitos coletivos tenha representado inescusável equívoco, a sua superação não se pode processar com total desprezo às práticas e realidades culturais consolidadas na prática das relações coletivas nacionais. Nesse ponto, aliás, cabe observar que, se a intervenção estatal, tópica e pontual, na regulação de interesses coletivos de categorias incapacitadas de produzir consensos representava um mal a ser combatido, a completa e absoluta abstenção do Estado na regulação desses conflitos coletivos, sem mecanismos de transição que permitissem a emancipação dessas organizações sindicais, não parece representar a melhor solução. Razoável seria encontrar um modelo de transição que, partindo dos parâmetros de atuação já inscritos na ordem nacional, estabelecesse, entre outros postulados, a obrigatoriedade de os sindicatos buscarem níveis ou padrões mínimos de representatividade, qualificando a respectiva atuação, sob pena de sanções que poderiam envolver a própria perda da representatividade, mas preservando-se, em qualquer caso, em caráter transitório, a intervenção normativa da Justiça do Trabalho.

Em relação ao modelo processual voltado à solução de conflitos individuais de trabalho, o sistema normativo inscrito na CLT representou, ao tempo em que foi editado, um grande avanço em relação ao modelo processual tradicional. As normas processuais da CLT assumiram um claro compromisso com a celeridade e a efetividade da prestação jurisdicional: consagraram um padrão de atuação jurisdicional simples (repudiando solenidades que não fossem vitais ou essenciais para as garantias processuais fundamentais dos litigantes), comprometido com as noções de amplo acesso à jurisdição (por meio de um processo oral, sem o auxílio necessário de advogado) e efetividade da prestação jurisdicional (prevendo decisões interlocutórias irrecorríveis de imediato, dotando o juiz de amplos poderes instrutórios e dispondo sobre o impulso oficial nas execuções).

Esse sistema processual idealizado para os conflitos individuais traduziu clara ruptura com a "cultura de idolatria ao processo" que forjou tantas gerações de juristas aqui e alhures, seduzidos pelas dimensões lógica e lúdica das regras de índole processual5.

Passados setenta anos do advento da CLT, os novos cenários socioeconômicos que se fizeram construir - forjados sobretudo pelo avanço da tecnologia, pela globalização da economia e pela explosão demográfica - indicam a existência de um grande volume de demandas trabalhistas tratando das mais variadas questões. Ao lado dos conflitos que envolvem direitos individuais heterogêneos propriamente ditos, têm sido detectadas, cada vez com maior frequência, lesões massivas e sistemáticas a direitos sociais básicos, veiculando temas como submissão de trabalhadores a condições análogas à de escravo, a exploração do trabalho infantil, simulações e fraudes por meio de cooperativas de mão de obra, terceirizações vinculadas a atividades finalísticas do tomador dos serviços, políticas de gestão de pessoal por meio de práticas que configuram assédio moral, entre tantas outras situações.

Dados estatísticos oficiais indicam a existência de um estoque expressivo de dezenas milhões de ações em todos os órgãos da Justiça do Trabalho no Brasil6. Para responder a essa demanda crescente e irreversível, que experimenta uma linha ascendente com a expansão da economia e a integração de

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novos contingentes de cidadãos aos mercados formal e informal de trabalho, faz-se necessário encontrar respostas adequadas, sobretudo porque não mais há espaço, segundo vem sinalizando o Conselho Nacional de Justiça, para a fórmula tradicional da simples e onerosa ampliação dos quadros de magistrados e servidores, com pesadas estruturas físicas de apoio.

O presente estudo busca abordar a via das ações coletivas como um dos caminhos que podem e devem ser trilhados para responder aos novos desafios postos ao Poder Judiciário, desafios que nos foram legados pela complexa sociedade contemporânea, que tem entre as suas características um expressivo contingente populacional7 - 8.

2. O processo coletivo brasileiro: aspectos gerais

O fenômeno de expansão de litigiosidade e de busca de novas respostas para...

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