Batalhadores do Brasil: Mundo do Trabalho Metamorfoseado e as Persistentes Desigualdades

AutorNoemia Aparecida Garcia Porto
Ocupação do AutorMestre e Doutoranda em Direito, Estado e Constituição (UnB) e Juíza do Trabalho (TRT/10).
Páginas100-110

Page 100

Introdução

Arnaldo Lopes Süssekind foi um homem do seu tempo, mas também o transcendeu. Sua fama e respeito poderiam ser atribuídos a fatores diversos, desde os cargos que ocupou, passando pela profunda cultura jurídica e chegando até a influência intelectual que exerceu formando gerações de pensadores no Direito do Trabalho. Sem prejuízo dessas circunstâncias, um destaque é devido à sua capacidade de pensar de forma abrangente, isto é, revelando preocupações nada triviais sobre o cotidiano do mundo do trabalho e respectiva decodificação disso para o futuro.

Portanto, pensando numa homenagem adequada a um nome que marcou e marca a trajetória dos estudos sobre o Direito do Trabalho no Brasil, parece adequado propor uma reflexão atual, que carrega a preocupação com o futuro.

Nesse contexto, importante destacar, inicialmente, que deixou de ser perceptível a existência de uma classe trabalhadora homogeneizada, proletarizada, fabril, fordista, sindicalizada e estável. Todavia, ao invés do "Fim do Trabalho"1 estamos vivendo uma era intensa de muito trabalho, seja porque há uma necessidade imensa de estar ocupado, como forma de acesso a bens que mantêm a sobrevivência humana na era do mercado, seja porque trabalhar tem representado, cada vez mais, uma parte quase total da vida das pessoas. Todavia, o trabalho, pelo menos desde o início dos anos 1970, tem deixado de se traduzir como sinônimo do trabalho empregado, formalizado e desenvolvido em torno de um segmento econômico visível e estável.

Page 101

As metamorfoses do mundo do trabalho e dos trabalhadores têm estado na preocupação de diversos pesquisadores, dentre eles Ricardo Antunes e Márcio Túlio Viana.

Juntamente com essas profundas transformações, percebe-se o surgimento de uma outra classe social, a chamada "classe C", não necessariamente proletarizada, mas de trabalhadores. Como esses trabalhadores vivenciam, ou deixam de fazê-lo, os esquemas de proteção social trabalhista, os quais tinham como pressuposto histórico o trabalho do tipo fabril? Quais questões de igualdade, exclusão ou inserção estão postas nesta nova realidade?

Em homenagem ao homem e ao jurista que pensava e refletia criticamente, ensaia-se esta abordagem, que tem como ponto de partida um exercício de Sociologia do Trabalho, para chegar até questões que possam animar futuras reflexões jurídicas sobre a proteção que é constitucionalmente devida - e não necessariamente realizada - às pessoas que necessitam viver do seu trabalho.

1. A "classe C" como fenômeno para além do aspecto meramente econômico

Pesquisadores, empresas, políticos e o próprio governo concordam que houve mudança substancial, no mínimo na última década, no que concerne ao perfil socioeconômico do país, constituindo a principal novidade o fortalecimento da chamada "classe C", composta por famílias que têm uma renda mensal domiciliar total (somando todas as fontes) entre R$ 1.064,00 e R$ 4.561,002.

De acordo com as informações divulgadas pelo Governo Brasileiro: os 94,9 milhões de brasileiros que compõem a nova classe média corresponde a 50,5% da população - ela é dominante do ponto de vista eleitoral e do ponto de vista econômico. Detêm 46,24% do poder de compra (dados 2009) e supera as classes A e B (44,12%) e D e E (9,65%) (disponível em: ).

Note-se que a chamada "classe C" por vezes é identificada como a nova classe média brasileira. Aliás, o número de brasileiros que estariam inseridos na "classe C" fez com que o Governo Brasileiro reconhecesse a necessidade de adequação das políticas públicas, a partir de estudos e mapeamentos sobre suas necessidades, origem, formação familiar etc.

Tratada como o maior fenômeno sociológico do Brasil recente, a "classe C" não exatamente representa apenas o ingresso de mais brasileiros à conhecida classe média. Há certo consenso entre os pesquisadores de que há distinções, sobretudo comportamentais, entre ambas. Segundo apontam as pesquisas, dentre outros aspectos, "não têm hábito de leitura e são absolutamente pragmáticos. Assim, valores universais e regras gerais são colocados sob suspeição com facili-dade, a não ser que vinculadas aos valores religiosos" (disponível em: ).

Aliás, o surgimento e o significativo crescimento da denominada "classe C" tem sido considerado um dos mais importantes fenômenos dos últimos anos não apenas para a Sociologia do Trabalho, mas também para a Economia e, no geral, para o capitalismo brasileiro3.

Como fenômeno complexo e atual, merece reflexões críticas - mas, nunca definitivas, em razão da dinâmica própria às acomodações sociais -, notadamente para que se possa pensar sobre se é indicativo de que os brasileiros caminham para uma sociedade mais igual.

Importante advertir-se, primeiro, no entanto, que o tempo presente é o de uma sociedade mundial e local altamente complexa que convive, ao mesmo tempo, e em espaços muito próximos, com a abundância e com a escassez, não apenas de recursos materiais, mas também de recursos de outra ordem (como culturais, educacionais, ambientais etc.). Além disso, há um pressuposto latente, e pouco questionado, "de que toda atividade social se organiza melhor quando se organiza sob a forma de mercado"

Page 102

(SANTOS, B. de S. 2003, p. 56). Ocorre, porém, que o capitalismo contemporâneo que caracteriza esse mercado não é o mesmo dos seus primórdios. Nota-se, aliás, uma incrível capacidade de reformulação do sistema capitalista que, atualmente, é dominado pelo capitalismo financeiro, carregando uma inédita desvinculação de uma relação direta com necessidades humanas. "A definição mais abstrata de capitalismo envolve a ideia de uma acumulação ilimitada de capital como um fim em si mesmo" (SOUZA, 2010, p. 26).

Na perspectiva da realidade brasileira, são constantes as equivalências, promovidas nem sempre de boa fé, entre crescimento econômico e desenvolvimento. Ainda que índices de crescimento econômico e de investimentos da mesma ordem sejam propagados a todo momento, não necessariamente vivemos uma era de desenvolvimento para todos. A sociedade brasileira permanece profundamente desigual.

Como adverte Mangabeira Unger no prefácio à obra de Jessé Souza (Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora?), é "preciso fazer o que raramente fizemos em nossa história nacional: reconstruir as instituições, inclusive as que organizam a economia de mercado e a democracia política" (2010, p. 9).

A tessitura aberta dos direitos fundamentais, caracterizados por indeterminações semânticas (afinal, o que é ser igual?)4, aponta para a necessidade de se definir aquilo que se considera, no presente estudo, como igualdade (o "outro" da desigualdade social).

Para Corsi:

todo valor ou direito fundamental tem o sentido de abrir um espaço de contingência completamente indeterminado, no interior dos quais os aparatos organizacionais e os seus procedimentos internos podem especificar determinadas formas (2001, p. 176).

A despeito da assumida contingência e da abertura do significado da igualdade, algum parâmetro é necessário para uma linguagem minimamente coerente e que visa a elucidar criticamente o fenômeno da "classe C", vista por alguns como nova classe média e por outros como a nova classe trabalhadora brasileira.

Na perspectiva do direito a igual respeito e consideração, igual tratamento não significa tratamento idêntico.

Temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quanto a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades (SANTOS, B. de S., 2003, p. 56).

Essa classe, e mesmo as demais classes sociais no Brasil, conseguem ser suficientemente compreendidas a partir do padrão monetário ou econômico de renda? O que essa concepção classificatória de caráter econômico consegue esconder? O aumento da chamada "classe C" tem relação direta com a geração de novos empregos? Quais novos empregos estão sendo gerados e ocupados pelos integrantes dessa classe? O aumento da "classe C" é indicativo da redução das desigualdades sociais? A proteção constitucionalmente prevista em favor das pessoas que necessitam viver do seu trabalho tem sido adequadamente articulada para dar conta da realidade? Essas são questões em aberto e que dizem respeito a milhões de brasileiros e quando "não se percebem a construção e a dinâmica das classes sociais na reali-dade temos, em todos os casos, distorção da realidade vivida e violência simbólica, que encobre dominação e opressão injusta" (SOUZA, 2010, p. 21).

Na visão de Jessé Souza, há uma classe que se situa entre a chamada "ralé" e a classe média5.

Trata-se daqueles que ele denomina de batalhadores brasileiros. Ocorre que não é possível desvendar, compreender e refletir sobre os batalhadores ou sobre a nova classe média à qual eles querem se juntar tendo como parâmetro apenas as ambições materiais (UNGER, 2010, p. 10).

Segundo as informações divulgadas pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da

Page 103

República, "a nova classe média não deseja o estilo de vida das elites e prefere produtos que valorizam a sua origem" (disponível em: ). Ainda segundo a pesquisa divulgada pelo Governo, "a nova classe média deseja cultivar respeito próprio (99,2%), ser respeitada pelos outros (99,1%), ter segurança para viver (99,1%), desfrutar da vida (98,5%), sentir que alcançou as aspirações (98,2%)" (disponível em: ).

Citando as pesquisas de Jessé Souza, nas notícias divulgadas pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE/PR), consta o seguinte: o valor básico da nova classe média é a transmissão...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT