Apontamentos sobre os juros nas obrigações pecuniárias

AutorMarcelo Trindade
Ocupação do AutorAdvogado. Professor no Departamento de Direito da PUC-Rio
Páginas171-203
Apontamentos sobre os juros nas
obrigações pecuniárias.
Marcelo Trindade1
Sumário : Plano de exposição; – 1. O caótico regime legal dos
juros no Brasil; –2. O regime de ampla liberdade do Código
Civil de 1916; – 3.O regime restritivo da Lei da Usura; – 4.A
Lei da Reforma Bancária e a criação do regime especial; –5.
Quase quatro décadas de disputas; – 6. O Código Civil de 2002
e as incertezas quanto ao novo regime geral; – 7. Incertezas
remanescentes; – 7.1. A doutrina e a revogação do art. 1º da Lei
da Usura; – 7.2. A revogação tácita do art. 1º da Lei da Usura
pelo Código Civil de 2002; –7.3. Aplicação do art. 591 do
Código Civil a todos os negócios do regime geral; – 7.4.
Aplicação do art. 591 do Código Civil à convenção de juros
moratórios; – 7.5. Os juros moratórios convencionais e a
revogação do art. 5º da Lei da Usura; – 7.6. A cláusula penal e
a Lei da Usura; – 7.7. Juros moratórios e custo de
oportunidade; – 8. Conclusões e observações de lege ferenda
Plano da exposição
Este breve estudo examina alguns dos temas não inteiramente
explicitados e pacificados na doutrina brasileira, sobre os juros nas
obrigações pecuniárias, incluindo a vigência de certos dispositivos
do Decreto 22.626/33, conhecido como Lei da Usura.
Trataremos especificamente dos limites legais à convenção so-
bre juros, no regime geral aplicável às obrigações de direito privado
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1 Advogado. Professor no Departamento de Direito da PUC-Rio.
disciplinadas pelo Código Civil, abrangendo juros compensatórios
e moratórios, e dos limites e da possibilidade de indenização de
prejuízos adicionais pelo descumprimento das obrigações pecuniá-
rias, inclusive por meio de cláusula penal moratória, se houver.
Este estudo não cuidará dos diversos regimes aplicáveis aos ju-
ros e à atualização monetária das obrigações que envolvem a Fazen-
da Pública e pessoas jurídicas de direito público, e que estão refle-
tidos no Tema 905 do Superior Tribunal de Justiça, fruto do julga-
mento de recursos repetitivos pela 1ª Seção daquele Tribunal.2
Mas é oportuno observar que o exame daquelas detalhadas e corre-
tas decisões, adotadas com caráter vinculante de repercussão geral,
demonstra que a complexidade do sistema legal brasileiro atingiu
patamares patológicos, com grave dano ao erário e à população,
representado pelas inúmeras demandas judiciais originadas da con-
tradição e da falta de clareza das leis brasileiras.
Este estudo também não cuidará diretamente da polêmica so-
bre a definição da taxa legal de juros referida no art. 406 do Código
Civil, ainda que, como se verá, nossa opinião seja francamente fa-
vorável ao prestígio, pela jurisprudência, da opção inequívoca feita
pelo Código Civil de 2002, no sentido da adoção de uma taxa flu-
tuante, como ocorre na maioria dos países social e economicamen-
te mais avançados. A decisão legislativa de 2002 evita ganhos ou
perdas injustas a credor e devedor, que uma taxa fixa sempre cau-
sa, a depender da realidade econômica do momento, e privilegia
uma remuneração ao credor compatível com a situação inflacioná-
ria ao longo do atraso no cumprimento da obrigação.
Nada obstante, tentamos, sempre que possível, isolar a análise
das questões objeto deste estudo da eventual alteração da jurispru-
dência atual do Superior Tribunal de Justiça sobre a utilização da
Taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia –
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2 Recursos Especiais Repetitivos nºs. 1.495.146/MG, 1.495.144/RS e
1.492.221/PR, todos da Relatoria do Ministro Mauro Campbell Marques. Tais
decisões devem ser examinadas em conjunto com os acórdãos proferidos pelo
Supremo Tribunal Federal nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs.
4.357/DF, 4.425/DF e 5.348 – as duas primeiras de Relatoria do Ministro Luiz
Fux e a última de Relatoria da Ministra Cármen Lúcia – que declararam parcial-
mente inconstitucionais a Emenda Constitucional 62/09 e o art. 1º-F da Lei
9.494/97 com a redação dada pela Lei 11.960/09.
Selic como taxa legal de juros, indicando explicitamente as hipóte-
ses em ela foi considerada.
1. O caótico regime legal dos juros no Brasil.
Vigoram no Brasil dois regimes legais radicalmente diversos,
quanto à liberdade de estipulação de juros nas obrigações de direi-
to privado.
Um dos regimes, que denominaremos especial, aplica-se à con-
venção de juros em todas as obrigações de direito privado em que
ao menos uma das partes seja uma instituição financeira. Tal regi-
me existe pelo menos desde 1964, como resultado da Lei
4.595/64, conhecida como Lei da Reforma Bancária, que criou o
Banco Central do Brasil, e estruturou e regulou o sistema financei-
ro nacional, composto, inclusive, pelas “instituições financeiras pú-
blicas e privadas” (Lei 4.595/64, art. 1º, inciso V).3
O outro regime, que denominaremos geral, é aplicável a todas
as relações privadas não regidas pelo regime especial das institui-
ções financeiras, e protagonizado pelo Código Civil de 2002.
Ambos os regimes são integrados, ainda, por leis especiais edi-
tadas em diversos momentos, as quais, nas situações que mencio-
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3 Judith Martins-Costa identifica três regimes normativos – “campos” ou “es-
paços normativos”, como prefere a ilustre professora gaúcha – dos juros no direi-
to privado brasileiro: “o campo em que ocorrem as relações obrigacionais em que
é parte credora entidade integrante do Sistema Financeiro Nacional”; “o campo
onde se desenvolvem atividades obrigacionais com finalidades marcadas por alta
densidade social, assim sendo: finalidade rural, industrial ou comercial e finali-
dade habitacional”; e o “um campo que poderíamos chamar de ‘sistema comum’,
que apanha todos os demais casos não abrangidos” pelos outros dois, “sendo
assim e, ao menos quantitativamente, ‘residual’ e não ‘geral’, não apenas as rela-
ções contratuais regidas pelo CC, mas, igualmente, as regidas pelo Código de
Defesa do Consumidor (CDC), desde que o fornecedor não seja instituição inte-
grante do Sistema Financeiro Nacional” (MARTINS-COSTA, Judith. O regime
dos juros no novo direito privado brasileiro, in Revista da Ajuris, Porto Alegre :
Ajuris, v. 34, n. 105, 2007, p. 238). Aqui adotamos uma divisão ligeiramente
diversa, reconhecendo apenas dois regimes normativos – o primeiro e o último
mencionados pela ilustre civilista –, e considerando as demais hipóteses como
normas especiais abrangidas por um dos dois regimes, sem contudo constituírem
um campo autônomo.

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