Notas sobre a relação de liquidação dos contratos resolvidos (Análise crítica da tese da eficácia retroativa da resolução no direito brasileiro)

AutorMarcelo Vieira von Adamek e André Nunes
Ocupação do AutorDoutor e Mestre em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da USP/Mestrando em Direito (LL.M.) pela Universidade de Munique. Advogado em São Paulo
Páginas343-377
Notas sobre a relação de liquidação dos
contratos resolvidos (Análise crítica da tese da
eficácia retroativa da resolução no direito
brasileiro)
Marcelo Vieira von Adamek1
André Nunes Conti2
Sumário: Introdução; – 1. Por uma construção dogmática da
resolução contratual a prescindir da eficácia retroativa; – 2.
Crítica à construção da eficácia retroativa; – 3. A relação de
liquidação entendida como a própria relação contratual
modificada; – 4. Regras gerais aplicáveis à relação de liquidação
assim entendida; – 5. A relação de liquidação nos casos
especiais de resolução; – 6. Conclusão.
“You can’t unscramble an egg”
Introdução
“Importa, porém, ter em conta a hipótese de o fato extintivo
operar também retroativamente, caso em que, propriamente, se
não dará a extinção de uma eficácia existente, mas sim o seu can-
celamento, como se jamais houvera existido. Cancelamento, po-
343
1 Doutor e Mestre em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da USP.
Professor Doutor do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de
Direito da USP. Advogado em São Paulo.
2 Mestrando em Direito (LL.M.) pela Universidade de Munique. Advogado
em São Paulo.
rém, acrescento, não no sentido de que o fato material, depois de
acontecido, bem como os outros fatos que, dada a sua juridicidade,
se produziram, possam ser eliminados da história, mas no sentido
de que a sua juridicidade é abolida ab initio, de modo que não só se
não produzem novos efeitos mas também se consideram os já pro-
duzidos como contrários ao direito, sendo por isso suprimidos por
um adequado jogo de restituições. Assim, se por virtude de uma
compra e venda sujeita a condição resolutiva, se fez a entrega da
coisa e o pagamento do preço, não é possível, certamente, dar o
que se passou como não passado, mas já será possível dá-lo como
não passado juridicamente, e fazer, assim, restituir coisa e preço,
como se nunca houvesse sido entregue ou pago3.
Nós estudiosos do Direito, por uma questão de método, temos
essa curiosa pretensão de nos arvorarmos o poder de alterar o pas-
sado jurídico.
E é com base nesse “poder” que a doutrina brasileira, em sua
quase unanimidade, tradicionalmente constrói a dogmática do ins-
tituto da resolução dos contratos4. Ensina-se que o contrato resol-
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3 Francesco Carnelutti, Teoria geral do direito – trad. A. Rodrigues Queiró e
A. Anselmo de Castro, SP: Saraiva, 1942, pp. 456-457 (destaques nossos).
4 Cf., dentre tantos: Ruy Rosado de Aguiar Jr., Extinção dos contratos por
incumprimento do devedor, RJ: AIDE, 2004, p. 257; Id., Extinção dos contratos,
‘in’ Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais – coord. Wanderley
Fernandes, 2ª ed. SP: Saraiva, 2012, p. 508; Alcides Tomasetti Jr., Ação Resolu-
tória (Direito contratual), ‘in’ Enciclopédia Saraiva do Direito – coord. R. Li-
mongi França, vol. 3, SP: Saraiva, 1977, p. 543; Id., Comentário ao art. 4º da Lei
8.245/91 ‘in’ Comentários à Lei de Locação de Imóveis Urbanos – coord. Juarez
de Oliveira, SP: Saraiva, 1992, p. 56; Pontes de Miranda, Tratado de Direito
Privado, vol. 26, SP: RT, 2012, p. 255; Judith Martins-Costa, A obrigação de
diligência: sua configuração na obrigação de prestar melhores esforços e efeitos do
seu inadimplemento, ‘in’ Inexecução das Obrigações – coord. Aline de Miranda
Valverde Terra e Gisela Sampaio da Cruz Guedes, RJ: Processo, 2020, p. 170;
Darcy Bessone de Oliveira Andrade, Do contrato – teoria geral, 3a ed. RJ: Foren-
se, 1987, p. 332; Orlando Gomes, Contratos – atual. E. Brito e R. P. Brito, 27a
ed. RJ: Forense, 2019, p. 179; Aline de Miranda Valverde Terra, Cláusula Reso-
lutiva Expressa, BH: Fórum, 2017, p. 195; Aline de Miranda Valverde Terra e
Gisela Sampaio da Cruz Guedes, Efeito indenizatório da resolução por inadim-
plemento, ‘in’ Inexecução das Obrigações – coord. Aline de Miranda Valverde
Terra e Gisela Sampaio da Cruz Guedes, cit., pp. 397-399; Araken de Assis,
Resolução do contrato por inadimplemento, 6ª ed. SP: RT, 2019, p. 126; Nelson
Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, Código Civil comentado, 12a ed. SP: RT,
vido – seja pelo exercício do direito formativo fundado em cláusula
resolutiva expressa, seja no pacto comissório tácito do art. 475 do
Código Civil, seja ainda em qualquer outra causa legal, como a
onerosidade excessiva do art. 478 do mesmo código – tem seus
efeitos retroativamente desconstituídos. Esse é o fundamento dog-
mático apontado para explicar tanto a liberação das obrigações con-
tratuais pendentes quanto o surgimento da pretensão à restituição
do quanto eventualmente já prestado.
Desde a segunda metade do século passado, além disso, gene-
ralizou-se entre nós o emprego da expressão “relação de liquida-
ção”5 para fazer referência ao âmbito em que se inserem os direitos
e deveres voltados a consumar os efeitos restituitórios da resolução
e, sempre que o caso, também os efeitos indenizatórios que a ela se
cumulam.
Não há unanimidade, contudo, no que se refere à definição da
natureza (contratual ou legal) dessa relação, bem como à definição
do fundamento normativo concreto para as pretensões restituitó-
rias e indenizatórias que dela fazem parte. Essas questões, para
além da considerável importância teórica para uma construção
dogmática consistente do instituto da resolução, revestem-se de
um interesse imediatamente prático no tocante à solução de diver-
345
2017, pp. 1.033-1.034; Nelson Rosenvald, Comentário ao art. 474, ‘in’ Código
Civil Comentado – coord. Cezar Peluso, SP: Manole, 2007, p. 368; Arnoldo
Wald, Curso de Direito Civil Brasileiro – Obrigações e Contratos, 17ª ed. SP:
Saraiva, 2006, p. 325; Carlos Alberto Bittar, Curso de Direito Civil, vol. 1, RJ:
Forense Universitária, 1994, p. 532. Dentre os autores mais tradicionais, cf. por
todos: J. M. de Carvalho Santos, Código Civil Brasileiro Interpretado, vol. 15, 3ª
ed. RJ: Freitas Bastos, 1945, p. 254; Id., Contrato, ‘in’ Repertório Enciclopédico
do Direito Brasileiro, vol. 12, RJ: Borsoi, 1947, p. 249; e M. I. Carvalho de
Mendonça, Doutrina e prática das obrigações, t. 2, 4ª ed. RJ: Forense, 1956, p.
336.
5 Cf.: Ruy Rosado de Aguiar Jr., Extinção dos contratos por incumprimento do
devedor, cit., pp. 41-42 e 258-259; Araken de Assis, Resolução do contrato por
inadimplemento, cit., p. 126; Renata C. Steiner, Reparação de danos – interesse
positivo e interesse negativo, SP: Quartier Latin, 2018, pp. 385-376; Aline de
Miranda Valverde Terra, Cláusula Resolutiva Expressa, cit., p. 183; e Rodrigo da
Guia Silva, Enriquecimento sem causa – as obrigações restitutórias no direito
civil, SP: RT, 2018, p. 274. Além de se referir à relação de liquidação, Pontes de
Miranda fala em relação jurídica de “aplanação” (Tratado de Direito Privado,
vol. 26, cit., p. 255).

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