Inadimplemento de deveres e a natureza jurídica da responsabilidade

AutorViviane Girardi e Isabella Silveira de Castro
Ocupação do AutorDoutora em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná/Mestranda bolsista CAPES em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Graduada em Direito pela PUC-Campinas
Páginas85-116
Inadimplemento de deveres e a natureza jurídica
da responsabilidade pós-contratual
Viviane Girardi1
Isabella Silveira de Castro2
Sumário: Introdução; – 1. A transformação da relação
obrigacional e do adimplemento; – 2. Das diversas espécies de
deveres que permeiam a relação obrigacional: uma distinção
necessária; – 3. Natureza jurídica da responsabilidade pelo
descumprimento dos deveres derivados da boa-fé: uma
proposta pautada no perfil funcional dos institutos; – 4.
Transplantando a problemática à esfera da responsabilidade
pós-contratual; – 5. Conclusão.
Introdução
A concepção de obrigação sofreu profundas transformações ao
longo dos anos. Já não é novidade a postura doutrinária de conce-
ber a relação obrigacional como um processo, o que reverbera na
teorização do próprio adimplemento. Atrelado a isto, a boa-fé ob-
jetiva é reconhecida como fonte de deveres obrigacionais inde-
pendente da manifestação de vontade das partes, deveres estes que
nascem, ainda nas tratativas, perpassam o desenvolvimento da
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1 Doutora em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Mestre em
Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Especialista
em Direito Civil pela Universidade de Camerino, Itália. Vice-Presidente da
Associação dos Advogados de São Paulo. Advogada sócia na Girardi Sociedade
de Advogados.
2 Mestranda bolsista CAPES em Direito das Relações Sociais pela
Universidade Federal do Paraná. Graduada em Direito pela PUC-Campinas.
obrigação e sobrevivem ao seu encerramento. São os deveres late-
rais de conduta, oriundos do princípio da boa-fé objetiva, atual-
mente ditos deveres de consideração (Rücksichtspflichten)3.
Neste - não mais tão novo - cenário, surgem debates sobre qual
o regime de responsabilidade civil aplicável no caso de descumpri-
mento dos deveres derivados do princípio contratual da boa-fé ob-
jetiva, sobretudo aqueles que se impõe às fases pré e pós-contra-
tual.
A partir da análise dos aspectos dessa categoria jurídica é possí-
vel concluir que as tentativas de definição apriorística da natureza
jurídica da responsabilidade pelo descumprimento do dever de agir
segundo o princípio da boa-fé objetiva falham por desconsiderarem
o perfil funcional dos institutos e o fato de os múltiplos deveres
derivados poderem ser modelados segundo os interesses das partes
e da tutela do escopo contratual.
Por isso, parece possível se defender que o regime da responsa-
bilidade civil aplicável seja determinado a partir do exame do inte-
resse tutelado pelo dever imposto. Isto porque os deveres podem
se destinar ora à instrumentalização e otimização da prestação (in-
teresse à prestação), ora à proteção das esferas jurídicas das partes
(interesse à integridade de sua esfera jurídica). A sistematização,
nesta perspectiva, se mostra possível graças a classificação dos de-
veres da boa-fé segundo o critério de funcionalidade baseada no
interesse tutelado.
À vista disso, o presente artigo enfrentará a problemática da
natureza jurídica da responsabilidade pelo descumprimento dos
deveres da boa-fé circunscritos na fase pós-contratual. Para tanto,
em um primeiro momento, se entende necessário discorrer a res-
peito das transformações da relação obrigacional e das diversas
classificações dos deveres derivados da boa-fé; para, em seguida,
explorar a temática da responsabilidade pelo descumprimento des-
te deveres e finalmente, localizar a discussão no âmbito da respon-
sabilidade pós-contratual.
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3 Acerca da nova terminologia dos deveres laterais de conduta, adotada na
Alemanha após a reforma do BGB em 2002, confira-se: NUNES FRITZ, Karina.
Boa- objetiva na fase pré-contratual – a responsabilidade pré-contratual por
ruptura das negociações. Curitiba: Juruá, 2008, p. 200 s.
1. A transformação da relação obrigacional e do adimplemento
Obrigação, em sua acepção jurídica, é a relação jurídica estabe-
lecida, no plano eficacial, por consequência de negócio jurídico, ato
ilícito ou expressa determinação legal4. A manualística clássica
prosseguiria sua descrição qualificando-a como de conteúdo relati-
vo, caráter transitório e adstrição do devedor à adoção de conduta
prestacional no interesse do credor5.
Entre nós, a doutrina de Clóvis do Couto e Silva6 sustenta que
deveres resultantes da concreção do princípio da boa-fé não se en-
quadrariam dentro das hipótese da teoria das fontes7, por não de-
correrem nem de ilícito, tampouco da autonomia privada, mas,
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4 A responsabilidade civil é classificada pela doutrina de acordo com as fontes
da obrigação. Diz-se responsabilidade contratual a decorrente do descumpri-
mento de um dever contratual e, extracontratual, aquela que nasce com o ato ou
ato-fato jurídico ilícitos. Apesar da nomelatura ter se consolidado, vale a ressalva
de que: “Muito embora a expressão responsabilidade contratual se tenha estabe-
lecido com sucesso, não é necessário que a obrigação cujo descumprimento lhe
dá azo tenha por fonte precisamente o contrato, pode ela residir em outro negó-
cio jurídico do qual decorram obrigações”. (TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Ali-
ne de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela de Sampaio da Cruz. Fundamentos
do Direito Civil: Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2020,
vol. 4, pág. 10).
5 Nas palavras de Washiton de Barros Monteiro obrigação é “a relação jurídi-
ca, de caráter transitório, estabelecida entre devedor e credor e cujo objeto con-
siste em numa prestação pessoal econômica, positiva ou negativa, devida pelo
primeiro ao segundo, garantindo-lhe o adimplemento através de seu patrimô-
nio”. (MONTEIRO, Washinton de Barros. Curso de Direito Civil. 13ª ed. São
Paulo: Saraiva, 1977, vol. 4, pág. 8).
6 COUTO E SILVA, Clóvis. A obrigação como processo. Rio de Janeiro:
FGV, 2006, pág. 65.
7 “A crise da teoria das fontes resulta da admissão de princípios tradicional-
mente considerados metajurídicos no campo da ciência do direito, aludindo-se,
assim, o rigor lógico do sistema com fundamento no puro raciocício dedutivo.
Em verdade, outros fatores passaram a influir poderosamente no nascimento e
desenvolvimento do vínculo obrigacional (...). A crise decorre da concepção de
que um código, por mais amplo que seja, não esgota o corpus juris vigente, o qual
se manifesta através de princípios, máximas, usos, diretivas, não apenas na inter-
pretação jurisprudencial, como também doutrinária”. (COUTO E SILVA, Cló-
vis. A obrigação como processo. Ob. cit., pág. 65).

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