Revisitando a tríplice transformação do adimplemento

AutorAnderson Schreiber
Ocupação do AutorProfessor Titular de Direito Civil da UERJ, professor da Fundação Getúlio Vargas, membro da Academia Internacional de Direito Comparado, procurador do Estado do Rio de Janeiro e advogado
Páginas3-39
Revisitando a tríplice transformação do
adimplemento
Anderson Schreiber1
Sumário: Nota introdutória; – 1. O direito das obrigações e a
boa-fé objetiva; – 2. A tríplice transformação do
adimplemento: temporal, conceitual e consequencial; – 3. O
adimplemento como processo prolongado no tempo.
Inadimplemento antecipado (anticipatory breach of contract).
Adimplemento retardado e a mora nas obrigações negativas; –
4. A releitura funcional do conceito de adimplemento. O
adimplemento como atendimento da função concreta do
negócio jurídico. O problema da frustração do fim contratual.
A chamada violação positiva do contrato; – 5. O adimplemento
substancial. A posição da jurisprudência brasileira. Parâmetros
de substancialidade e o atual papel do adimplemento
substancial; – 6. As consequências do adimplemento e do
inadimplemento. Responsabilidade pós-contratual. A
resolução do vínculo como medida extrema. Execução
específica, execução pelo equivalente e perdas e danos.
Responsabilidade pelo inadimplemento das obrigações de meio
e de resultado.
“Não, não tenho caminho novo.
O que tenho de novo é o jeito de caminhar”
(Thiago de Mello, Vento Geral, 1984)
3
1 Professor Titular de Direito Civil da UERJ, professor da Fundação Getúlio
Vargas, membro da Academia Internacional de Direito Comparado, procurador
do Estado do Rio de Janeiro e advogado.
Nota introdutória
No ano de 2007, a saudosa Revista Trimestral de Direito Civil
publicou um artigo de minha autoria intitulado “A Tríplice Trans-
formação do Adimplemento – adimplemento substancial, inadim-
plemento antecipado e outras figuras”. Parecia-me, àquela época,
que as diversas figuras que de algum modo impactavam o enfoque
tradicionalmente conferido ao fenômeno do (in)adimplemento ob-
rigacional mereciam uma análise mais integrada, a partir de três
planos (temporal, conceitual e consequencial) em contraposição ao
quadro fragmentado que resultava da apresentação fragmentada
daquelas figuras, usualmente estudadas de modo isolado, quase tó-
pico. Passados mais de dez anos daquela publicação, verifica-se que
boa parte das ideias ali defendidas encontraram eco e desenvolvi-
mento em outros trabalhos acadêmicos e também em decisões ju-
diciais, confirmando a existência de um anseio generalizado por
alguma sistematização nesta matéria. Por outro lado, despontaram,
desde então, novas e instigantes questões correlatas aos temas es-
tudados, de maneira que, para atender ao carinhoso convite das
coordenadoras da obra, ingressei em uma revisitação do texto (ag-
giornamento), que apresento ao leitor nas linhas a seguir.
1. O direito das obrigações e a boa-fé objetiva
É preciso destacar, antes de mais nada, que, em comparação
com outros ramos do direito privado, o direito das obrigações é
usualmente visto como um setor de “mais lenta evolução no tem-
po.”2 Isso talvez se explique pela sua vinculação a uma sólida tradi-
4
2 Na íntegra: “O facto de no domínio das obrigações prevalecer desde há mui-
to o princípio da autonomia privada, de serem relativamente constantes ao longo
dos séculos os interesses e as conveniências das partes, e de as relações creditó-
rias, pela sua natureza intrínseca, sofrerem muito menos que as relações familia-
res ou sucessórias e do que a organização da propriedade, a influência de factores
políticos, morais, sociais e religiosos que marcam cada época da história da hu-
manidade, aliado ao aperfeiçoamento notável que os jurisconsultos romanos clás-
sicos imprimiram ao direito das obrigações, deram como resultado que este,
além da sua vastidão e intensa projecção prática, acusa ainda agora duas notas
particulares, que cumpre realçar: a sua relativa uniformidade nas diferentes áreas
ção romanista, que se revelou aí particularmente engenhosa no de-
senvolvimento de categorias e preceitos tão abstratos e intuitivos
que são tratados como “princípios imutáveis da equidade natural”,
sobre os quais repousam, “mais inabaláveis que sobre colunas de
bronze, os fundamentos das obrigações.”3 Ainda hoje visto como “a
parte do direito onde, com maior liberdade, têm lugar os princípios
da razão pura”,4 o direito obrigacional vem, não raro, elevado a um
conjunto de “verdades eternas, como certos postulados da geome-
tria e da aritmética”.5 Nada disso, entretanto, tem impedido que,
para além da secular perenidade da disciplina jurídica das obrigaçõ-
es, a atividade privada e a prática contratual se modifiquem pro-
fundamente.
O advento do modo industrial de produção e a massificação das
relações contratuais acentuaram, como se sabe, injustiças flagran-
tes que o asceticismo lógico e a pretensa neutralidade do direito
das obrigações escondiam. A indiferença do direito obrigacional
com o conteúdo das relações contratuais – exigindo apenas, em
fórmula que ainda hoje se repete nas codificações, que o objeto do
contrato seja lícito e possível, não que seja justo ou equilibrado6
5
do globo e a sua notória estabilidade ou a sua mais lenta evolução no tempo”
(ANTUNES VARELA, João de Mattos. Das Obrigações em Geral. vol. I. Coim-
bra: Almedina, 2000, p. 25).
3 GIORGI, Giorgio. Teoria delle obbligazioni nel diritto moderno italiano.
Florença: Fratelli Cammelli, 1924, p. 28.
4 É a opinião de Toulier, registrada por SERPA LOPES, Miguel Maria de.
Curso de Direito Civil – Obrigações em Geral. vol. II. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1995, p. 7.
5 A tal postura alude, criticamente, NONATO, Orosimbo. Curso de Obriga-
ções. vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 55, afirmando: “O conceito de
obrigação varia no tempo e no espaço para atender às peculiaridades do consórcio
civil em que se expanda: não foge, não pode fugir à lei da evolução universal”.
6 A fórmula vem repetida inclusive no recente Código Civil brasileiro, de
2002, cujo art. 104 declara: “A validade do negócio jurídico requer: I – agente
capaz; II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III – forma pres-
crita ou não defesa em lei.” A nova codificação ocupa-se, contudo, do equilíbrio
das prestações em dois momentos: o desequilíbrio originário vem coibido pelas
figuras da lesão (art. 157) e do estado de perigo (art. 158); e o desequilíbrio
superveniente encontra remédio nos arts. 478- 480 e, por via interpretativa,
também no art. 317, permitindo-se, mediante a configuração dos requisitos ne-
cessários, tanto a resolução quanto a revisão do contrato.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT