Código de defesa do consumidor e a herança digital

AutorMarcos Ehrhardt Jr.
Páginas207-225
E A HERANÇA DIGITAL
Marcos Ehrhardt Jr.
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor
de Direito Civil dos Cursos de Mestrado e Graduação em Direito da Universidade
Federal de Alagoas (Ufal) e do Centro Universitário Cesmac. Editor da Revista
Fórum de Direito Civil (RFDC). Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito
Civil (IBDCIVIL). Presidente da Comissão de Enunciados e Vice-Presidente da
Comissão de Família e Tecnologia do Instituto Brasileiro de Direito de Família
(IBDFAM). Associado do Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade
Civil (IBERC) e Membro Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual –
IBDCont. Advogado. E-mail: contato@marcosehrhardt.com.br
Sumário: 1. Introdução. 2. Anal, o que são bens digitais? 3. A incidência das normas protetivas
do CDC sobre os bens que integram a herança digital. 4. Dever de informar e a (im)possibilidade
do reconhecimento da abusividade das cláusulas que limitam a transmissibilidade de bens
digitais de conteúdo patrimonial. 5. Considerações nais. 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
À medida que nossas interações sociais e econômicas se intensicam em
ambientes virtuais, é natural que surjam novos questionamentos acerca da na-
tureza jurídica e da segurança das ações praticadas através da rede mundial de
computadores. Se cada vez menos dependemos do suporte físico, baseado em
papel, para celebrarmos nossos contratos, é inegável que o avanço tecnológico
permitiu a utilização de bens e serviços que não existiam no tempo da elaboração
do Código de Defesa do Consumidor, decorridos mais de trinta anos.
Até o momento, muitos se ressentem de um vácuo legislativo sobre temas
relacionados à tecnologia, situação que se agravou nos últimos meses, uma vez
que os recentes desaos decorrentes das medidas de enfrentamento da pandemia
sanitária da Covid-19 provocaram signicativa mudança de comportamento em
grande parte da população que resistia à utilização de plataformas eletrônicas de
contratação de bens e serviços. Termos como app, delivery e streaming passaram
a integrar o vocabulário de boa parte dos consumidores nos últimos anos.
As dúvidas surgem quanto aos meios de pagamento eletrônico e às obriga-
ções relativas ao exercício do direito de arrependimento, mas também podem
ser identicadas no que se refere à própria utilização das plataformas digitais de
comércio eletrônico, desde a identicação precisa do fornecedor-vendedor até a
compreensão das instruções para se ter acesso, via download, ao conteúdo digital
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oferecido. Não é tarefa fácil para quem cresceu e se formou num ambiente ana-
lógico migrar para um admirável mundo novo, onde a conectividade relativiza
noções de tempo e espaço e está ao alcance de um toque na tela de um smartphone.
Muitas pessoas, de diferentes idades e de níveis de escolaridade diversos, não
se deram conta de que foram lançadas em plataformas e aplicativos de comércio
eletrônico sem ter clareza acerca da natureza dos serviços oferecidos, o que se
agrava no contexto da massicação das relações em um mercado de consumo
cada vez mais impessoal, no qual a assimetria do poder negocial não deixa espaço
para o exercício da autonomia privada, colocando em xeque o efetivo exercício
de direitos fundamentais.
Se grande parte de nossa rotina acontece num ambiente digital, é natural que
acumulemos arquivos de mídia (fotos, vídeos, música), documentos (cartas, me-
morandos, apresentações e planilhas) e mensagens (áudio, texto) que integram o
universo de coisas que podem ser objeto de uma relação jurídica. Esse diversicado
conjunto de bytes ocupa um espaço crescente em nossas vidas. Quem perde seus
arquivos ou tem um telefone extraviado (sem um backup atualizado), rapidamente
percebe o quanto dependemos de informações que não estão registradas em papel.
E qual deve ser o destino desse acervo de bens digitais depois de nossa morte?
Enquanto alguns projetos de lei tramitam no Congresso Nacional, os primei-
ros casos começam a chegar ao Poder Judiciário. Os debates sobre a herança digital
vêm sendo apresentados sob os mais diversos matizes, ora envolvendo aspectos
de direito sucessório, ora se expandindo para o campo puramente contratual
ou da tutela da propriedade, ora atingindo aspectos relacionados à proteção da
privacidade; originados, em geral, na disciplina do Código Civil, cuja arquitetura
pressupõe a existência de paridade entre os gurantes da relação jurídica.
No entanto, considerável parcela das relações que originam os bens digi-
tais costuma estar situada no campo das relações de consumo. Por essa razão,
mediante pesquisa bibliográca e jurisprudencial, o presente trabalho pretende
analisar a aplicação dos princípios e regras atinentes às relações de consumo
quando do surgimento de lides envolvendo o destino do acervo de bens digitais
do autor da herança, tendo como cerne o dever de informação e os termos de
uso das plataformas que oferecem bens e serviços digitais.
2. AFINAL, O QUE SÃO BENS DIGITAIS?
Antes de se discutir a transmissão dos bens digitais, é preciso delimitar os
contornos desta categoria. É justamente na disparidade de compreensões sobre
o tema que reside boa parte das controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais.
Um ponto de partida para responder à indagação proposta é analisar se estamos
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