A garota de berlim e a herança digital

AutorKarina Nunes Fritz
Páginas251-271
A GAROTA DE BERLIM E A HERANÇA DIGITAL
Karina Nunes Fritz
Doutora (summa cum laude) pela Humboldt Universität de Berlim (Alema-
nha). Prêmio Humboldt de melhor tese de doutorado na área de Direito Civil
(2018). LL.M na Friedrich-Alexander Universität Erlangen-Nürnberg (Alemanha).
Mestre em Direito Civil pela PUCSP. Secretária-Geral da Deutsch-lusitanische
Juristenvereinigung (Associação Luso-alemã de Juristas), sediada em Berlim.
Pesquisadora no Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Alemão) e
bolsista do Max-Planck Institut für ausländisches und internationales Privatrecht
(Hamburgo). Autora da coluna “German Report”, no Portal Migalhas. Professora
e Parecerista. E-mail: contato@karinanunesfritz.adv.br.
Sumário: 1. Introdução. 2. O caso da garota de Berlim. 2.1 O processo. 2.2 A decisão do Bun-
desgerichtshof. 3. Reexões em torno da teoria da intransmissibilidade da herança digital. 4.
Argumento adicional: o contrato digital. 5. Conclusões. 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Entramos denitivamente no mundo digital. Esse fenômeno se intensicou
recentemente com a pandemia de Covid-19 que, pela primeira vez na história
recente, connou em casa milhões de pessoas em todo o planeta a m de tentar
frear a virulenta propagação do novo coronavírus (SARS-COV-2), que em poucas
semanas se espalhou da longínqua província de Huan, na China, para todos os
continentes, provocando uma crise de saúde pública sem precedentes e, em sua
esteira, uma crise econômica só equiparável à grande depressão de 1929.1
Boa parte da população mundial com acesso à internet passou a viver e
trabalhar no mundo online, instaurando por aqui denitivamente a prática – há
muito comum na Europa e nos USA – do home oce. E ainda não há previsão de
quando a vida voltará à normalidade, vez que a Europa, três meses depois do m
do primeiro lockdown, enfrenta agora a dura realidade de uma segunda onda de
contágio, que colocou quase todo o continente novamente em isolamento social,
com a dramática paralisação de várias atividades econômicas.2 No Brasil, nem
superamos a primeira onda, embora quase tudo esteja funcionando novamente,
após curto isolamento, indiferente aos números alarmantes: mais de 5 milhões
de infectados e mais de 162 mil mortes.3
1. FMI diz que mundo entrou em recessão e enfrenta momento sombrio. Valor Econômico, 03.04.2020.
2. Sobre o tema, permita-se remeter a: NUNES FRITZ, Karina. Lei 14.010/2020 caduca quando a Europa
enfrenta a segunda onda de covid-19. Coluna German Report, Migalhas, 03.11.2020.
3. Fonte: Wikipedia, 10.11.2020.
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Nesse contexto, a quantidade de pegadas deixadas no mundo virtual au-
mentou absurdamente, da mesma forma que a produção de conteúdos digitais
e dados pessoais. Esses estão sendo coletados, tratados e utilizados sem a devida
autorização por países, como a China, a m de auxiliar no combate a pandemia,4
colocando em risco a tutela dos direitos fundamentais da personalidade, privacida-
de e autodeterminação informacional. Essa prática, porém, é anterior à pandemia
e faz parte da rotina dos grandes conglomerados digitais como Google, Facebook,
Yah oo , Instagram, Amazon etc., que fazem fortuna com a comercialização indevida
dos dados pessoais de seus usuários.
Diante dessa realidade, mais do que nunca impõe-se a pergunta: o que deve
acontecer com os conteúdos e dados armazenados na internet após a morte do ti-
tular? Se desde os primórdios da civilização os bens do falecido cam em poder do
núcleo familiar mais próximo, na sociedade contemporânea esse princípio milenar
tem sido questionado – em bandeira levantada pelos conglomerados digitais – sob
o clamor de maior privacidade e intimidade do indivíduo, muito embora o mesmo
indivíduo que clama por privacidade, expõe-se diariamente em redes sociais como
Facebook e Instagram, impulsionados pelas próprias plataformas digitais.
Esse evidente paradoxo do homem da era digital aparece com muita evidência
no debate em torno da chamada herança digital. O termo, em si, já é polêmico,
pois muitos questionam, com razão, se se pode falar juridicamente em herança
“digital”. Anal, herança não é tudo o que se pode imputar a uma pessoa no mo-
mento da morte, independe do bem existir no mundo analógico ou digital? Uma
coisa é certa: não se pode tomar posição no debate sem analisar o leading case na
Europa sobre o tema da herança digital, qual seja, o caso da garota falecida no
metrô de Berlim, julgado em 2018 pela Corte infraconstitucional alemã – Bun-
desgerichtshof (BGH). O objetivo desse ensaio é abordar o caso alemão e trazer
algumas reexões em torno das controvérsias que a temática suscita.
2. O CASO DA GAROTA DE BERLIM
2.1 O processo
Os pais de uma adolescente de 15 anos, falecida em 2012 em acidente no
metrô de Berlim, entraram com ação contra o Facebook requerendo acesso à
conta da lha após a mesma ter sido transformada em memorial depois que um
usuário desconhecido comunicou à empresa o óbito da garota.5 As circunstâncias
4. Coronavirus accelerates China´s big data collection but privacy concerns remain. South China Morning
Post, 26.02.2020.
5. Trata-se do processo BGH III ZR 183/17, julgado em 12.07.2018, movido apenas no nome da genitora da
falecida. Uma análise da decisão encontra-se ainda em: NUNES FRITZ, Karina e SCHERTEL MENDES,
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