Legítima e herança digital: um desafio quase impossível

AutorSimone Tassinari Cardoso Fleischmann e Letícia Trevizan Tedesco
Páginas165-186
LEGÍTIMA E HERANÇA DIGITAL:
UM DESAFIO QUASE IMPOSSÍVEL
Simone Tassinari Cardoso Fleischmann
Professora permanente do Programa de Mestrado, Doutorado e Graduação da
UFRGS. Advogada, mediadora, coordenadora do Grupo de Pesquisa em Direito
de Família, Sucessões e Mediação da UFRGS – Cnpq.
Letícia Trevizan Tedesco
Bacharela em Direito pela UFRGS. Pesquisadora do grupo de pesquisa Direito de
Família, Sucessões e Mediação da UFRGS – Cnpq. Membro da Assessoria Jurídica
Hernani Estrella – AJHE UFRGS para empresas. Advogada.
Sumário: 1. Introdução. 2. O direito à legítima na ordem jurídica brasileira. 2.1 Disciplina legal
e características. 2.2 Inventário e apuração do valor da legítima. 3. Do conteúdo dos bens
digitais. 3.1 Caracterização dos bens digitais. 3.2 Bens digitais e direitos da personalidade. 3.3
Bens digitais patrimoniais. 4. A (in)compatibilidade entre a legítima e alguns bens digitais. 4.1 O
problema referente ao acesso às criptomoedas: breve análise do Bitcoin. 4.2 Bens digitais sub-
metidos a termos de uso. 5. O princípio da saisine e os bens digitais. 6. Conclusão. 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O surgimento da internet trouxe consigo o ambiente digital e, com isso, a
possibilidade de extensão da identidade do indivíduo, por meio das diferentes
ferramentas de interação social fornecidas virtualmente, assim como de criação
de um novo conceito de bens, completamente desvinculado do mundo material,
os bens digitais.1
Os bens digitais vêm sendo considerados parte do patrimônio do indivíduo
e, em razão disso, surgem debates sobre o seu destino após o falecimento do titu-
lar. Isso porque a relevância desses bens para o indivíduo tem progressivamente
ultrapassado a esfera privada, reetindo, em muitos casos, signicativos proveitos
econômicos. Assim sendo, e considerando-se o direito fundamental à herança,
reete-se acerca das implicações da inclusão dos bens digitais no inventário e,
1. Nesse sentido, Lívia Leal expõe que: “a internet viabiliza uma projeção da identidade do indivíduo, que
se distingue da concepção que se tinha como paradigma até então. A identidade é ressignicada no
meio digital, podendo associar-se a representações diversicadas, como uma fotograa, um nickname,
uma página, um perl de uma rede social, que caracterizam o indivíduo perante os demais”. LEAL,
Livia Teixeira. Internet e morte do usuário: a necessária superação do paradigma da herança digital.
Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 16, p. 181-197, abr./jun. 2018. p.1.
EBOOK HERANCA DIGITAL_2ED_TOMO 01.indb 165EBOOK HERANCA DIGITAL_2ED_TOMO 01.indb 165 04/09/2022 20:35:5104/09/2022 20:35:51
SIMONE TASSINARI CARDOSO FLEISCHMANN E LETÍCIA TREVIZAN TEDESCO
166
em especial, do modo como será realizada a quanticação desses bens, conside-
rando-se o necessário cálculo da legítima.
Para isso, contudo, dada a incipiência das discussões sobre o tema no direito
sucessório, tanto em âmbito nacional quanto na doutrina estrangeira, serão feitos
alguns necessários esclarecimentos sobre a relação entre os bens digitais e os direi-
tos da personalidade, considerando-se a possibilidade de violação à privacidade
e à intimidade do de cujus com a transmissão de certos bens.
Além disso, serão levantadas algumas questões especícas que inferem na
inclusão de alguns bens digitais na legítima, como peculiaridades das criptomo-
edas, e eventuais termos de uso regrando a propriedade e transmissão de alguns
bens. Em remate, colocar-se-á os apontamentos realizados nesse artigo à luz do
princípio da saisine, buscando discutir como se dará a sua aplicação em relação
aos bens digitais.
2. O DIREITO À LEGÍTIMA NA ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA
2.1 Disciplina legal e características
O direito à legítima pertence às garantias fundamentais dispostas na Cons-
tituição Federal. Em seu artigo 5º, inciso XXX,2 a Constituição Federal garante
o direito à herança, com fundamento nos institutos da propriedade privada e da
família. Garantir o direito à herança signica assegurar a sucessão causa mortis
privada, isso é, após o falecimento do indivíduo, os seus bens deverão ser trans-
mitidos aos seus herdeiros legais ou testamentários.3
Os herdeiros legais ou legítimos são, em sentido amplo, aqueles a quem a
lei chama à sucessão de quem faleceu ab intestato.4 Em sentido estrito, contudo,
a expressão faz referência aos herdeiros necessários, que são os descendentes, os
ascendentes e o cônjuge, conforme dispõe o artigo 1.8455 do Código Civil. Já os
2. Art. 5º, XXX, Constituição da República Federativa do Brasil: “é garantido o direito de herança.
3. TEPEDINO, Gustavo; NEVARES, Ana Luiza Maia; MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Fundamentos do
Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2020. v. 7. Direito das Sucessões, p. 3.
4. Sem deixar testamento.
5. Art. 1.845, Código Civil Brasileiro: “São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o
cônjuge.
Cabe mencionar a atual controvérsia em torno da caracterização do companheiro como herdeiro ne-
cessário, O Supremo Tribunal Federal xou a seguinte tese de repercussão geral: “É inconstitucional a
distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no artigo 1.790 do CC/2002,
devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do artigo
1.829 do CC/2002” (RE 878.694 e RE 646.721). No entanto, não decidiu se, em consonância com esse
julgamento, o companheiro é incluído como herdeiro necessário no artigo 1.845 do Código Civil ou
não.
EBOOK HERANCA DIGITAL_2ED_TOMO 01.indb 166EBOOK HERANCA DIGITAL_2ED_TOMO 01.indb 166 04/09/2022 20:35:5104/09/2022 20:35:51

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT