A regulação da 'herança digital': uma breve análise das experiências europeia e estado unidense

AutorConrado Paulino da Rosa e Cíntia Burille
Páginas273-304
A REGULAÇÃO DA “HERANÇA DIGITAL”:
UMA BREVE ANÁLISE DAS EXPERIÊNCIAS
EUROPEIA E ESTADO UNIDENSE
Conrado Paulino da Rosa
Advogado. Pós-Doutor em Direito – Universidade Federal de Santa Catarina.
Doutor em Serviço Social – PUCRS. Mestre em Direito pela UNISC, com a defesa
realizada perante a Università Degli Studi di Napoli Federico II, na Itália. Professor da
graduação e do Mestrado em Direito da Faculdade do Ministério Público – FMP,
em Porto Alegre, onde coordena a Pós-graduação presencial e EAD em Direito
de Família e Sucessões. Membro da Diretoria Executiva do IBDFAM-RS. Professor
do “Meu Curso”, em São Paulo. Autor de obras sobre direito de família e suces-
sões. www.conradopaulinoadv.com.br / contato@conradopaulinoadv.com.br
Cíntia Burille
Advogada. Mestra em Direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Pú-
blico (FMP). Especialista em Direito de Família e Sucessões pela FMP. Especialista
em Direito Civil e Processual Civil pela UniRitter. Professora de cursos de pós-
-graduação em Direito de Família e Sucessões. https://www.burillemarquesdias.
com.br / cintia@burillemarquesdias.com.br
Sumário: 1. Introdução – 2. Os bens digitais e sua classicação – 3. A experiência europeia: o
leading case do tribunal federal alemão, o bundesgerichtshof (bgh) e a Lei orgânica 3/2018 de
proteção de dados pessoais e garantia dos direitos fundamentais espanhola – 4. Estados Unidos:
revised uniform duciary access to digital assets act (rufadaa) e a necessária preocupação com
a privacidade – 5. Considerações nais – 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O avanço tecnológico tem levado diversas sociedades a gerar um acervo
imenso de ativos e valores digitais. Tais avanços e inovações no mundo da tec-
nologia têm inuenciado a vida do homem como um todo, inclusive após a sua
morte. Contudo, a popularização dessas tecnologias, embora apresente inúmeros
benefícios, sem um regramento claro e efetivo e a consciência do alcance dos seus
efeitos pode, também, gerar uma série de infortúnios.
No Brasil, a título de exemplo, muito embora o artigo 5º, inciso XXX, da
Constituição Federal garanta a todos o direito à herança, atualmente, inexiste, no
ordenamento jurídico pátrio, previsão normativa que disponha sobre a herança
digital1. Dessa forma, o presente estudo versa sobre a regulação da transmissibi-
1. Honorato e Leal endossam que nem o Código Civil de 2002 regula especicamente a sucessão de
conteúdos digitais, tampouco o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/14) e a Lei Geral de Proteção de
EBOOK HERANCA DIGITAL_2ED_TOMO 01.indb 273EBOOK HERANCA DIGITAL_2ED_TOMO 01.indb 273 04/09/2022 20:35:5704/09/2022 20:35:57
CONRADO PAULINO DA ROSA E CÍNTIA BURILLE
274
lidade post mortem dos bens digitais em razão de sua natureza, classicada em
situações jurídico-patrimoniais, existenciais e patrimoniais-existenciais, nos
países da Alemanha, Espanha e Estados Unidos.
Assim, diante do exponencial crescimento do acesso à Internet pelos
usuários2, da consequente produção e troca de dados pessoais no mundo
virtual, bem como do aumento na aquisição de produtos e serviços digitais,
questiona-se: qual a destinação dada aos bens digitais do extinto nos dois
países suprarreferidos?
Tal análise delimitar-s e-á ao estudo do leading case julgado pela Corte infra-
constitucional alemã em 2018; da legislação espanhola, a Ley Orgánica 3/2018,
que dispõe sobre a proteção de dados pessoais e garantia de direitos fundamentais
e que estabelece regras para a transmissão do conteúdo digital do morto; e da
orientação de regulamentação existente nos Estados Unidos acerca da matéria,
a Revised Uniform Fiduciary Access to Digital Assets Act (RUFADAA). A seleção
de tais países, por certo, não se deu de forma contingente, mas sim em razão de
apresentarem maior maturidade no debate em torno da “herança digital” em
comparação ao que ocorre no Brasil.
Nesse sentido, a par do cenário brasileiro e de todas as carências enfrentadas,
seja pelo ordenamento jurídico que segue sem regulamentar a matéria, seja pelo
Judiciário que mal deu os primeiros passos na elaboração de critérios para decidir
acerca da transmissão de bens digitais, é que se faz necessário realizar esse estudo
da experiência em outros países, a m de buscar parâmetros para estabelecer um
cenário que propicie um entendimento adequado, à luz das garantias constitu-
cionais de todos os envolvidos.
Com a nalidade de promover a presente pesquisa, adota-se a metodologia
hipotético-dedutiva e a técnica de pesquisa bibliográca e jurisprudencial.
Dados brasileira (Lei nº 13.709/18) possuem qualquer disposição nesse sentido. A falta de regulamen-
tação da matéria enseja, inclusive, uma perda nanceira estatal, no que diz respeito ao recolhimento
do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), haja vista o conteúdo patrimonial que
alguns bens digitais possuem (HONORATO, Gabriel; LEAL, Livia Teixeira. Exploração econômica
de pers de pessoas falecidas: reexões jurídicas a partir do caso Gugu Liberato. Revista Brasileira de
Direito Civil, v. 23, p. 155-173, jan. 2020).
2. De acordo com o Comitê Gestor da Internet no Brasil, em razão de fatores como a redução dos custos
do acesso à rede, a difusão das conexões móveis realizadas por meio do telefone celular, a expansão
das redes Wi-Fi públicas e o surgimento de plataformas digitais disponíveis para os dispositivos
móveis, houve um notável incremento no número de internautas no país na última década. “Saímos
de 39% da população brasileira que usava a Internet, em 2009, para 70%, em 2018, o que representa
uma estimativa de 126,9 milhões de indivíduos com dez anos ou mais conectados à rede”. (COMITÊ
GESTOR DA INTERNET NO BRASIL. Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Co-
municação nos Domicílios Brasileiros: TIC Domicílios 2018. São Paulo: Comitê Gestor da Internet,
2018).
EBOOK HERANCA DIGITAL_2ED_TOMO 01.indb 274EBOOK HERANCA DIGITAL_2ED_TOMO 01.indb 274 04/09/2022 20:35:5704/09/2022 20:35:57
275
A REGULAÇÃO DA “HERANÇA DIGITAL”
2. OS BENS DIGITAIS E SUA CLASSIFICAÇÃO
Ao longo da vida, certamente, bilhões de pessoas irão interagir, externar seus
pensamentos e opiniões, compartilhar fotos e vídeos, adquirir bens corpóreos e
incorpóreos, contratar serviços, dentre centenas de outras possíveis atividades
por meio da rede mundial de computadores. Como decorrência lógica, o passar
dos anos “fará com que sejam depositadas na rede inúmeras informações, ma-
nifestações da personalidade e arquivos com conteúdo econômico, todos esses
ligados a um determinado sujeito.3. Cada usuário (internauta)4 terá, portanto,
seu patrimônio digital.
O Código Civil vigente, elaborado em e para um mundo analógico, não iden-
tica o tratamento dessas situações – e nem poderia, pois, à época da elaboração
do projeto que deu origem à codicação civil de 2002, sequer existiam. No entanto,
não se pode fechar os olhos para o fato de a sociedade estar apresentando interesse
por novas coisas, impensáveis para o sujeito proprietário projetado pelo Código
Civil desde o texto napoleônico. “Este, sendo uma lei feita para o patrimônio e
em um tempo histórico em que a acumulação era marca da apropriação, encontra
imensas diculdades para solucionar demandas em uma sociedade em que os
bens estão de descorporicando em um ritmo acelerado.5.
Desse modo, diante da inexistência de regulação especíca sobre a ma-
téria no Brasil, busca-se na experiência estrangeira uma forma de tratamento
adequado a essas novas situações jurídicas. Parte-se, com isso, dos termos
cunhados pelos Estados Unidos: digital assets6 e digital property7, para referi-
rem-se ao patrimônio digital de um usuário. A m, contudo, de adequar-se a
nomenclatura utilizada pelo Código Civil, a opção neste estudo será denominar
tais ativos como bens. E, como se apresentam em um ambiente diferente do
convencionalmente tratado pela legislação pátria, o melhor seria considerá-los
3. ZAMPIER, Bruno. Bens Digitais: cybercultura, redes sociais, e-mails, músicas, livros, milhas aéreas,
moedas virtuais. 2. ed. São Paulo: Editora Foco, 2021. p. 61.
4. “Trata-se de toda pessoa física ou jurídica que utiliza a internet.” (TEIXEIRA, Tarcisio. Direito digi-
tal e processo eletrônico. 5. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 47). Ainda, explica o autor que,
convencionalmente, “tem-se utilizado a expressão ‘internauta’ para designar aquele que navega pela
internet, ou melhor, que se utiliza da internet, independentemente de sua nalidade, de pesquisar,
jogar, comunicar-se, comprar etc.” (TEIXEIRA, Tarcisio. Direito digital e processo eletrônico. 5. ed. São
Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 48).
5. GUILHERMINO, Everilda Brandão. Para novos bens, um novo direito sucessório. In: TEIXEIRA,
Daniele Chaves (Coord.). Arquitetura do planejamento sucessório. Belo Horizonte: Fórum, 2021. Tomo
II. p. 161-174. p. 161.
6. Em tradução livre: ativos digitais.
7. Também em tradução livre: propriedade digital.
EBOOK HERANCA DIGITAL_2ED_TOMO 01.indb 275EBOOK HERANCA DIGITAL_2ED_TOMO 01.indb 275 04/09/2022 20:35:5704/09/2022 20:35:57

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT