Inteligência artificial e a tutela póstuma de dados pessoais: notas sobre as decisões automatizadas

AutorSergio Marcos Carvalho de Ávila Negri e Maria Regina Detoni Cavalcanti Rigolon Korkmaz
Páginas227-249
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
E A TUTELA PÓSTUMA DE DADOS
PESSOAIS: NOTAS SOBRE AS DECISÕES
AUTOMATIZADAS
Sergio Marcos Carvalho de Ávila Negri
Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Especialista em Direito Civil pela Università degli Studi di Camerino
(Itália). Professor Adjunto do Departamento de Direito Privado da Faculdade
de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e membro do corpo
docente permanente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito
e Inovação da mesma Instituição. E-mail: sergio.negri@uf.edu.br.
Maria Regina Detoni Cavalcanti Rigolon Korkmaz
Doutora em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Direito e Inovação pela UFJF.
Advogada. E-mail: mariareginadcr@gmail.com.
Sumário: 1. Introdução. 2. A proteção póstuma da personalidade: o debate sobre a abrangência
dos dados pessoais. 3. Considerações sobre as decisões automatizadas. 4. Proteção póstuma
do titular dos dados: retomando o caso da Itália. 5. Considerações nais. 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
No artigo “e Dark Secret at the Heart of AI, publicado na MIT Technology
Review, Will Knight reporta que um grupo de pesquisa no Mount Sinai Hospital,
em Nova Iorque, decidiu utilizar deep learning1 em um grande banco de dados
composto por informações referentes a 700 mil pessoas. O Deep Patient, como
cou conhecido, quando testado em novos registros foi capaz de prever doen-
ças futuras, além de antecipar possíveis distúrbios psiquiátricos em pacientes,
como a esquizofrenia, que é caracterizada pelo difícil diagnóstico médico. A
1. Na síntese de Eduardo Magrani a partir de Otterlo, Machine learning, ou aprendizado de máquina, é
o gênero de qualquer metodologia ou técnica que emprega dados para desenvolver novos padrões e
conhecimentos, com a aptidão de gerar modelos preditivos sobre dados e de modicar os seus padrões
decisionais de forma autônoma. Deep learning refere-se a um princípio mais geral de aprendizagem de
vários níveis de composição, não necessariamente inspirados nos sistemas neurais humanos. Neural
Networks representam uma rede de vários processadores simples, geralmente cada um deles com
memória local, constituindo um sistema adaptativo complexo que pode alterar a sua estrutura interna
com base nos dados fornecidos. MAGRANI, Eduardo. Entre dados e robôs: Ética e privacidade na era
da hiperconectividade. 2. ed. Porto Alegre: Arquipélago, 2019. p. 25-26.
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SERGIO MARCOS C. DE ÁVILA NEGRI E MARIA REGINA DETONI C. RIGOLON KORKMAZ
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partir de dados sensíveis, como os relativos à saúde, o programa traçou sérios
prognósticos, sem que fosse possível saber como chegou a tais inferências.2
Entre os vários aspectos que podem ser extraídos do caso Deep Pati ent,
três deles interessam especificamente ao presente estudo: a importância dos
dados como inputs para o desenvolvimento de sistemas de Inteligência Ar-
tificial (IA), as crescentes potencialidades desses sistemas e como os dados
pessoais são objeto de interesses de agentes heterônomos no cenário da cres-
cente datificação dos mais diversos fatos da vida.
Adicionalmente, no cenário tecnológico atual, Giorgio Resta observa que
a tendência de permanência dos dados pessoais, para além da morte da pes-
soa, lança o tema para a fronteira entre o direito das sucessões e os direitos da
personalidade, projeção essa que se justica “por um dado fenomenológico de
imediata evidência: a dissociação entre a existência biológica de um indivíduo e a
sua ‘pessoa eletrônica’’.3 A permanência desses dados após a morte lança desaos
em diferentes contextos, que se projetam desde a manutenção de redes sociais
e arquivos digitais, até a utilização de conjuntos de dados da pessoa falecida em
sistemas como o Deep Patient, que poderia ser de interesse dos familiares para
ns de prognósticos, a título de exemplo.
Todavia, a tutela póstuma de dados pessoais e, de maneira geral, de conteú-
dos digitais – sejam eles referentes a dados pessoais ou não4 – está em aberto no
Brasil, embora sejam identicadas iniciativas no Congresso Nacional. Ausente
uma conformação regulatória prévia, é possível identicar posições divergentes
a respeito do tema no cenário brasileiro.5
2. KNIGHT, Will. e Dark Secret at the Heart of AI. 2017. MIT Technology Review. Disponível em:
https://www.technologyreview.com/2017/04/11/5113/the-dark-secret-at-the-heart-of-ai/. Acesso
em: 04 abr. 2019.
3. RESTA, Giorgio. La “morte” digitale.Il Diritto Dell’informazione e Dell’infor matica, Milano, v. 30, n. 6,
p. 891-920, [s. n.] 2014. Giurè Editore. p. 894, tradução nossa.
4. Extrai-se da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – Lei n. 13.709 de 2018 que dado pessoal é qualquer
“informação relacionada a pessoa natural identicada ou identicável”, o que guarda um paralelismo
com o modelo europeu de proteção de dados (BRASIL. Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral
de Proteção de Dados Pessoais. Brasília, Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2018/lei/L13709.htm. Acesso em: 12 set. 2020, n. p.).
5. O primeiro posicionamento sustenta a transmissibilidade apenas dos bens digitais de natureza pa-
trimonial e de natureza dúplice – no que couber –, que seguiriam o regime do direito sucessório e
integrariam o paradigma da herança digital. Em se tratando de natureza existencial, os bens digitais
não seriam transmissíveis, considerando a tutela dos direitos da personalidade de terceiros e da pessoa
falecida (LEAL, Livia Teixeira. Internet e morte do usuário: a necessária superação do paradigma da
herança digital. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCilvil, Belo Horizonte, v. 16, p. 181-197, abr./
jun. 2018. p. 194). Sobre o entendimento que sustenta a transmissibilidade de todos os conteúdos como
regra, salvo manifestação do interessado em vida em sentido contrário, cf. MENDES, Laura Schertel
Ferreira; FRITZ, Karina Nunes. Case Report: Corte alemã reconhece a transmissibilidade da herança
digital. RDU, Porto Alegre, v. 15, n. 85, p. 188-211, 2019. p. 192-210.
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