Tecnologia, morte e direito: em busca de uma compreensão sistemática da 'herança digital'
Autor | Heloisa Helena Barboza e Vitor Almeida |
Páginas | 1-23 |
TECNOLOGIA, MORTE E DIREITO:
EM BUSCA DE UMA COMPREENSÃO
SISTEMÁTICA DA “HERANÇA DIGITAL”
Heloisa Helena Barboza
Doutora em Direito pela UERJ e em Ciências pela ENSP/FIOCRUZ. Especialista em
Ética e Bioética pelo IFF/FIOCRUZ. Professora Titular de Direito Civil da Faculdade
de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Diretora da Facul-
dade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Advogada.
Vitor Almeida
Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Discente do Estágio Pós-Doutoral do Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGD-UERJ). Professor
Adjunto de Direito Civil da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (ITR/
UFRRJ). Professor do Departamento de Direito da PUC- Rio. Advogado.
Ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e denir a vida
como a implantação e manifestação de poder.1
Sumário: 1. Introdução. 2. Morte e direito. 3. Herança como instituto jurídico: características
tópicas. 4. Sucessão causa mortis na titularidade de bens e direitos digitais: um itinerário me-
todológico para a compreensão sistemática da categoria de “herança digital”. 5. Considerações
nais. 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A morte da pessoa humana é um fato tido como certo. Tal percepção encontra
sentido quando se considera a morte biológica, que consiste no processo de extin-
ção da vida do corpo do ser humano. Não obstante, através dos séculos se cultua
a memória dos mortos, de diferentes modos e por razões diversas, o que gera um
estado de permanência daquele que faleceu, quer através de suas imagens, obras,
quer nas lembranças daqueles com quem conviveu, as quais se fragilizam com o
passar do tempo e acabam por desaparecer, se cessado o seu culto.
1. MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. 5. reimp.
São Paulo: n-1, 2020, p. 5.
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HELOISA HELENA BARBOZA E VITOR ALMEIDA
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A compreensão da morte como m da vida é objeto de análise por vários cam-
pos do saber, das ciências, das artes e das religiões, desde tempos imemoriais, sendo
constante a especulação sobre o que ocorre depois da morte, em particular, sobre a
possibilidade da “vida” após a morte. A Medicina tem exercido, nos últimos séculos,
o importante papel de “reconhecer” a morte biológica e determinar quando esta
ocorre. Os efeitos sociais desencadeados pela morte de alguém são múltiplos, muitos
dos quais são estabelecidos e regulamentados pelo Direito, a partir da declaração
de morte pela Medicina. Cabe ao Direito proteger os bens materiais e imateriais
deixados pela pessoa que faleceu, que constituem sua herança, inclusive zelar pela
sua memória, como decorrência da inafastável tutela da dignidade humana.
Em decorrência desse vínculo necessário entre o saber médico e o atuar jurí-
dico, as recentes interferências da Medicina no processo de morte, que provocam
seu adiamento e põem em jogo a autonomia do paciente, criando uma situação de
verdadeiro “gerenciamento da morte”, tornou-se necessária a participação do Di-
reito também nessa etapa, especialmente para ns de proteção da pessoa humana
em sua dignidade. Desse modo, o Direito passou a cuidar de situações especícas
que antecedem a morte, que envolvem desde o respeito à autonomia quanto à
disposição de órgãos para ns de transplantes post mortem até os denominados
“testamentos vitais”, além dos tradicionais efeitos jurídicos dela decorrentes, até
então enfeixados na sucessão causa mortis.
Paralelamente ao desenvolvimento médico-cientíco, que a cada dia retarda
mais e mais a morte, o avanço tecnológico, aqui mencionado em referência à área
digital/computacional, passou a interferir diretamente na situação pós-morte
de alguém, no que acima se denominou estado de permanência, para torná-lo
praticamente indelével. A profundidade e complexidade dessa interferência
permite uma série de ilações sobre a morte como o m da vida humana, que não
se esgotaria mais na morte biológica, na medida em que a “pessoa” continua a
“viver” na internet, num tempo-espaço indenido.
Se cabe ao Direito cuidar dos efeitos jurídicos da morte de alguém, que in-
cluem sua memória como referido, é indispensável examinar a tutela dessa “vida
virtual” do morto na internet, a qual envolve direitos do falecido e de sua família,
de natureza patrimonial e existencial. Trata-se da proteção dessa “herança digital”,
expressão que se tornou recorrente. Contudo, pela situação inédita e peculiar,
diversas indagações surgem, a começar pela que é relativa ao conteúdo existente
na internet: está ele (ou não) compreendido no conceito de herança vigente no
direito brasileiro, de modo a atrair a normativa sucessória existente; caso não
esteja como tutelá-lo.
O presente trabalho procura contribuir, ainda que de modo breve, para a
construção das respostas a essas difíceis indagações, com base na interpretação
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