Tutela póstuma dos direitos da personalidade e herança digital

AutorMaici Barboza dos Santos Colombo
Páginas123-142
TUTELA PÓSTUMA DOS DIREITOS
DA PERSONALIDADE E HERANÇA DIGITAL
Maici Barboza dos Santos Colombo
Doutoranda em Direito Civil (USP), Mestre em Direito Civil e Especialista em
Direito Civil Constitucional (UERJ). Professora e Advogada.
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Chico Buarque – Dueto
Sumário: 1. Introdução. 2. Tutela póstuma dos direitos da personalidade – um direito para que(m)?
3. Direitos da personalidade: transcendendo a categoria dos direitos subjetivos. 4. Extrapatri-
monialidade e defesa dos direitos da personalidade. 5. Enm, como tratar o conteúdo digital
da pessoa falecida conforme a tutela póstuma dos direitos da personalidade? 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
No livro Os testamentos traídos, Milan Kundera critica a conduta de Max
Brod, amigo íntimo de Franz Kaa, a quem o célebre escritor tcheco conou o
destino póstumo de sua obra: queimá-las todas.1 A notoriedade da obra kaaniana
conrma a deslealdade do amigo, que, certo da qualidade dos escritos do falecido,
não apenas não as incinerou, como as publicou postumamente, contrariando
frontalmente as orientações do autor. Para Kundera, “Max Brod criou a imagem
de Kaa e de sua obra; criou ao mesmo tempo a kaologia,2 referindo-se à cons-
trução autônoma de uma personalidade para Kaa necessariamente associada
a seus trabalhos.
O direito moral do autor constitui modalidade de direito da personalidade e
por isso o caso de Kaa e Brod é pertinente ao tema do presente estudo: qual deve
ser o destino dos direitos da personalidade após a morte de seu titular?
Essa indagação tem ganhado novos contornos que exigem do direito civil
contemporâneo a reformulação dogmática das suas categorias. A razão disso reside
1. KUNDERA, Milan. A sombra castradora do Santo Garta. Os testamentos traídos. São Paulo: Companhia
das Letras, 2017, p. 43-59.
2. KUNDERA, Milan. A sombra castradora do Santo Garta. Os testamentos traídos. São Paulo: Companhia
das Letras, 2017, p. 48.
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MAICI BARBOZA DOS SANTOS COLOMBO
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no desenvolvimento de meios tecnológicos para uma vivência da personalidade
em ambiente virtual, que, aliás, nem sempre é coincidente com a personalidade
real, mas igualmente merece tutela jurídica.3 É possível que Kaa, se existisse
nos tempos atuais, não diria ao amigo para atear fogo à sua obra materializada
em escritos, mas apenas pediria para deletar os seus textos de seu computador,
ou da “nuvem, ou talvez simplesmente não compartilharia sua senha de acesso
com ninguém. Mas seria isso suciente para garantir o respeito à sua vontade de
não ver sua produção intelectual publicada?
Segundo dados recentes do IBGE, cerca de 80% dos domicílios brasileiros
possuem acesso à internet.4 A maior parte dos usuários acessa a internet por apare-
lhos celulares e os utiliza para o envio de mensagens de voz, de texto, ou imagens.5
São, portanto, aspectos da personalidade humana que transitam por meio digital.
Soma-se a isso o frequente uso de redes sociais como forma de comunica-
ção. facebook, instagram, twitter são apenas alguns dos aplicativos atualmente
utilizados para a interação, por meio dos quais as pessoas constroem também
suas personalidades ou, nas palavras de Stefano Rodotà, expressam os seus corpos
eletrônicos: “o conjunto de informações existentes sobre nós e sobre a maneira
como nos apresentamos na rede.6
No caso de Becky Palmer, uma jovem britânica de 19 anos, o facebook era
massivamente utilizado para conversar com amigos, postar fotos e conteúdo
que julgava pertinentes. Becky foi acometida de uma grave doença e faleceu em
2010. Já no m de sua vida, sua mãe, Louise Palmer, a auxiliava a acessar as redes
sociais e, por isso, tinha os dados de acesso da conta da lha. Com o falecimento
de Becky, a mãe continuou utilizando a conta para se sentir mais perto da lha,
até que o Facebook adotou a política de tornar os pers de pessoas falecidas em
3. “A identidade se prospectaria no mundo digital por meio de representações diversas, como uma fo-
tograa, um nickname (apelido), que caracterizam o indivíduo perante os demais. Uma observação
interessante é que essas representações não necessariamente correspondem à realidade fática, variando,
inclusive, de acordo com o tipo de plataforma virtual que o sujeito utilize” (LEAL, Lívia Teixeira. Internet
e morte do usuário. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2019, p. 17).
4. PNAD Contínua TIC 2018: Internet chega a 79,1% dos domicílios do país. 29 abr. 2020. Agência IBGE.
Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-no-
ticias/releases/27515-pnad-continua-tic-2018-internet-chega-a-79-1-dos-domicilios-do-pais. Acesso
em: 07 set. 2020.
5. PNAD Contínua TIC 2018: Internet chega a 79,1% dos domicílios do país. 29 abr. 2020. Agência IBGE.
Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-no-
ticias/releases/27515-pnad-continua-tic-2018-internet-chega-a-79-1-dos-domicilios-do-pais. Acesso
em: 07 set. 2020.
6. “Pero hablamos de clonación también a proposito del cuerpo electrónico, esto es, del conjunto de
informaciones existentes en nosotros y sobre la manera en que nos presentamos en la red. Se habla
así, de clonación de tarjetas de crédito y de ‘robo de identidad’: nuestro lugar es ocupado por quien se
apodera de nuestro código secreto, de nuestra password” (RODOTÀ, Stefano. La vida y las reglas: entre
el derecho y el no derecho. Madrid: Editorial Trotta, 2010, p. 96).
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