Da vulnerabilidade digital à curiosa ?vulnerabilidade empresarial': polarização da vida e responsabilidade civil do impulsionador de conteúdos falsos e odiosos na ?idade' da liberdade econômica

AutorFernando Rodrigues Martins
Ocupação do AutorMestre e Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP. Professor adjunto de Direito Civil na Universidade Federal de Uberlândia, pesquisador científico pelo Instituto Max Planck (Alemanha); Diretor-presidente do Instituto de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon). Coordenador do Procon-MG no Triângulo Mineiro e Promotor de Justiça...
Páginas93-126
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DA VULNERABILIDADE DIGITAL À CURIOSA
‘VULNERABILIDADE EMPRESARIAL’:
POLARIZAÇÃO DA VIDA E RESPONSABILIDADE
CIVIL DO IMPULSIONADOR DE CONTEÚDOS
FALSOS E ODIOSOS NA ‘IDADE’
DA LIBERDADE ECONÔMICA
Fernando Rodrigues Martins
Mestre e Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP. Professor adjunto de
Direito Civil na Universidade Federal de Uberlândia, pesquisador cientíco pelo Ins-
tituto Max Planck (Alemanha); Diretor-presidente do Instituto de Política e Direito do
Consumidor (Brasilcon). Coordenador do Procon-MG no Triângulo Mineiro e Promotor
de Justiça em Minas Gerais.
Sumário: 1. Nota introdutória: diversidade e segurança na rede – 2. Ética do resultado, corrupção
e surgimento do neossujeito: possibilidades e riscos da inovação. O pluralismo em xeque – 3.
Espaço-tempo identitário digital: entre a vulnerabilidade digital e o embuste da vulnerabilidade
empresarial – 4. Três defeitos cibernéticos e o pioneirismo do CDC: a democracia tutelada – 5.
Liberdade de expressão do impulsionador de conteúdo defeituosos – 6. Considerações nais – 7.
Referências bibliográcas.
1. NOTA INTRODUTÓRIA: DIVERSIDADE E SEGURANÇA NA REDE
O direito compreendido como estrutura rígida e indiferente aos grandes temas
sociais1 se equivale simplesmente à teoria, ciência especulativa2 e sem utilidade para
resolução dos conf‌litos próprios do dia a dia. Por isso, a pesquisa deriva de problemas.3
Os ‘supostos’ da norma são os casos que, representados por fatos, ganham
importância não apenas nos contornos do reconhecimento social, mas igualmente
1. Ver a clássica diferença entre as funções do cientista social e cientista do direito em WEBER, Max. Metodolo-
gia das ciências sociais. Trad. Augustin Wernet. 5. ed. São Paulo e Campinas: Cortez e Unicamp (coedição),
2016.
2. VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Brasília: UnB, 1979.
3. POPPER, Karl S. Conjecturas e refutações. Brasília: Universidade de Brasília, s.d., p. 181. Remarque: a ciência
parte de problemas; que esses problemas aparecem nas tentativas que fazemos para compreender o mundo
da nossa ‘experiência’ (experiência que consiste em grande parte de expectativas ou teorias, e também em
parte do conhecimento derivado da observação – embora ache que não existe conhecimento derivado de
observação pura, sem mescla de teorias e expectativas)”.
FERNANDO RODRIGUES MARTINS
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pela perspectiva da ciência e da aplicação do Direito4 que têm por escopos avaliá-los
perante a ordem jurídica:5 decidir quanto à licitude ou ilicitude, razoabilidade ou
abusividade, necessidade de sanção ou da inexistência de razões para punição. O
incorreto é o Direito permanecer imutável; ao revés deve ser (literalmente) dinâmico
e provido de credibilidade institucional.6
O impacto pelo desenvolvimento das tecnologias digitais de informação e comu-
nicação na globalidade é avassalador. As transformações7 são sentidas e compreendi-
das em todos os campos, conceitos e dimensões: pessoa e sociedade; conhecimento
e informação; educação e ensino; cidade e democracia; economia e negócio; Estados
e soberania; cultura e arte; línguas e linguagens; gerações e sustentabilidade.8
É necessário reconhecer, para tanto, que o espaço digital ao mesmo tempo
que oferta inúmeros recursos à pessoa9 também a expõe em riscos desmensurados.
Transubstanciados os usuários em cybercitizens, onde a diversidade10, pluralismo11
4. AGUILAR, Fernando Herren. Metodologia da ciência do direito. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 124. Impor-
tante abordagem quanto aos múltiplos papéis dos juristas. De forma mais específ‌ica e com apoio em Ronald
Dworkin ao estabelecer a forte diferenciação entre a atividade jurisdicional da legislativa, onde ao juiz não
cabe discricionariedade, senão aplicação correta do sistema jurídico na sua integridade, pesquisar VIGO,
Rodolfo Luis. Interpretação jurídica: do modelo juspositivista-legalista do século XIX às novas perspectivas.
São Paulo, 2005, p. 66.
5. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Ed. RT, 1990, p. 190. Na ad-
vertência que as questões de fato e as questões de direito se interpenetram.
6. ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 362. Explica: “A
exigência de durabilidade, como dever de permanência no tempo, não pode ser confundida, todavia, com
a exigência de imutabilidade do ordenamento jurídico [...] Em outras palavras: mudança ‘demais’ gera
desconhecimento e desconf‌iança, porém mudança de ‘mens’ provoca inefetividade”.
7. LEVY, Pierre. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 17. Ao abordar
a interconexão com apoio em Christian Huitema: “A conexão é um bem em si. Como Christian Huitema
disse muito bem, o horizonte técnico da cibercultura é a comunicação universal: cada computador do
planeta, cada aparelho, cada máquina, do automóvel à torradeira, deve possuir endereço na Internet. Este
é o imperativo categórico da cibercultura”.
8. TAPSCOTT, Don. A hora da geração digital: como os jovens que cresceram usando a internet estão mudando
tudo, das empresas aos governos. Trad. de Marcelo Lino. Rio de Janeiro: Agir Negócios, 2010. Basta ver as
passagens entre as gerações: ‘baby boom’ (1946-1964); ‘baby bust’ ou geração X (1965-1976); ‘millennium
ou geração Y (jan. de 1977 a jan. de 1997); ‘next’ ou geração Z (jan. de 1998 até o presente).
9. Ver o nosso MARTINS, Fernando Rodrigues. Sociedade da informação e promoção à pessoa: empoderamento
humano na concretude novos direitos fundamentais. In: RDC. v. 96. São Paulo: Ed. RT, 2014, p. 225-257.
Anotamos: “A pessoa na sociedade on-line, sociedade virtualizada, sociedade em rede é hipervulnerável.
Geralmente não conhece as tecnologias utilizadas, não tem controle recíproco dos dados do fornecedor,
interage especialmente considerando as legítimas expectativas lançadas. Apenas mesmo o empoderamento
jurídico da pessoa através de novas dimensões de direitos fundamentais, considerando a Constituição aberta
como projeto sempre inacabado, é capaz de equilibrar a situação jurídica existencial e virtual”.
10. MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. 2. ed. São
Paulo: Ed. RT, p. 192. Com apoio em Erik Jaime: “Em estudos mais recentes, Erik Jayme identif‌ica na Carta
de Direitos Fundamentais da Europa um direito à diversidade. Efetivamente, tinha baseado seu curso de
1995 em duas tendências antagônicas, globais: a integração econômica dos povos e mercados e tribais ou
locais: a importância de respeito à identidade cultural dos indivíduos. Nestes estudos destaca uma evolução,
do direito das minorais e da autoadministração ou de participação de grupos minoritários, evoluiu o direito
atual para um geral ‘direito à diversidade’, que pode ter também inf‌luências fortes no novo direito privado”.
11. MENDES, Laura Schertel. O diálogo entre o Marco Civil da Internet e o Código de Defesa do Consumidor.
In: MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Direito privado e desenvolvimento econômico: estudos da Associação
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DA VULNERABILIDADE DIGITAL À CURIOSA ‘VULNERABILIDADE EMPRESARIAL’
e segurança12 são valores reconhecidos, evolui-se de um imaginário ‘auditório uni-
versal’13 para convivência em inusitado ‘auditório virtual’14, mediante expectativa de
interesses notadamente positivados: liberdade de expressão, liberdade de comércio,
autodeterminação informativa, não-discriminação.
Enf‌im, locus que deve ser democrático, promovendo, em tempo real e plural,
comunicações, modelos, discursos, pesquisas, conhecimento e economia (digital e
informacional).15
Diversidade16 que não guarda o conceito apenas quantitativo, próprio da ‘co-
bertura’ das redes e mercado (capilaridade), mas extremamente qualitativo pelas
diferenças, pelas desigualdades, pela heterogeneidade entre os usuários, em todos
os nichos possíveis (posição social, saber, religião, ideologia, política, discursos,
opiniões, entre outras variações)17 e, que justamente por isso, a discriminação não
pode ter utilidade, salvante as exceções legais a serem interpretadas restritivamente.
Aliás, diversidade com nítido assento constitucional (quer seja na cultura, quer no
meio ambiente).18
Segurança, de outro lado, no que respeita não somente ao tráfego de dados,
negócios eletrônicos e relacionamentos em redes sociais, mas também à circulação
de notícias, informações e comunicações, o que exige clara aproximação de termos
claros, corretos e precisos, onde a inverdade não deveria ser objeto de expansão ou
impulso.
Destarte, se o arrimo que tende a sustentar a sociedade digital tem por vigas
estruturantes ‘diversidade’ e ‘segurança’ – deixaremos o ‘pluralismo’ para menção
posterior – é de indagar: o empresário impulsionador de informações inverídicas,
Luso-Alemã de Juristas (DLJV) e da Rede Alemanha-Brasil de Pesquisas em Direito do Consumidor. São
Paulo Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 258. Especialmente, com base na dogmática alemã, ao tratar do
direito fundamental informático’ na segurança de dados.
12. PINHEIRO, Patrícia Peck. A janela indiscreta das aplicações digitais: vazamentos de dados escancaram a
falta de garantia de segurança na Internet. In: Revista dos Tribunais, v. 1007, São Paulo, 2019, p. 363-367.
Considera: “o volume de dados disponíveis sobre usuários e empresas nunca foi tão grande. Por ser o ativo
mais valioso da nossa sociedade, as informações presentes no ambiente digital são alvo de crimes com uma
frequência cada vez maior, o que impõe a necessidade de adotar uma série de cuidados para evitar ataques
ou minimizar riscos”.
13. PERELMAN, Chaim, OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. Trad. Maria
Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 22. Aproveitamos aqui a relevante
teoria da argumentação criada por Perelman para nela incluirmos o ‘auditório virtual’. Nas palavras dos
autores: “em matéria de retórica, parece-nos preferível def‌inir o auditório como o conjunto daqueles que o
autor quer inf‌luenciar com sua argumentação. Cada orador pensa, de uma forma mais ou menos consciente,
naqueles que procura persuadir e que constituem o auditório ao se dirigem seus discursos”.
14. Ver ZANELLATO, Marco Antônio. Condutas ilícitas na sociedade digital. In: RDC, v. 44. São Paulo, 2002,
p. 206-261. Em artigo vanguardista para época da publicação na escorreita diferenciação entre átomos
(mundo analógico) para bits (mundo digital).
15. LORENZETTI, Ricardo Luis. Comércio eletrônico. Trad. Fabiano Menke. São Paulo: Ed. RT, 2004, p. 27.
16. Vide LESSIG, Lawrence. Code 2.0. New York: Basic Books, 2006. p. 3.
17. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Trad. Roneide Venancio Majer. (A era da informação: economia,
sociedade e cultura, v. 1). São Paulo: Paz e Terra, 1.999, p. 285.
18. Ver Constituição Federal arts. 215, inc. V; 216-A § 1º, inc. I; e 225, § 1º, inc. II.

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