A desconexão profissional entre o direito e o dever: a resposta da nova lei portuguesa

AutorJoão Leal Amado
Páginas259-277
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A DESCONEXÃO PROFISSIONAL ENTRE O DIREITO E O
DEVER: A RESPOSTA DA NOVA LEI PORTUGUESA
João Leal Amado1
1. Tempo de trabalho e tempo de vida
Quando celebra um contrato de trabalho, o trabalhador não vende
o seu corpo ao empregador. Nem, decerto, a sua alma. Mas talvez se
possa dizer que aquele vende o seu tempo, rectius, vende parte do seu
tempo. Na escravidão, o que se compra é o próprio sujeito, é o homem,
ao passo que no trabalho assalariado é a sua energia (a sua energia
muscular e a sua energia mental, as suas energias físicas e psíquicas), o
que representa tempo de vida, tempo do homem. Recordem-se, a este
propósito, as belas palavras de Fernando Pessoa sobre o seu patrão
Vasques: «Tenho, muitas vezes, inexplicavelmente, a hipnose do patrão
Vasques. Que me é esse homem, salvo o obstáculo oca sional de ser dono
das minhas horas, num tempo diurno da minha vida? »2. E também
Pepetela escreveu, num dos seus romances: «Era dono do seu tempo, a
única liberdade válida»3.
Única ou não, a verdade é que esta liberdade é preciosa e é
iniludivelmente sacrificada quando alguém celebra um contrato de
trabalho e assume a qualidade de trabalhador dependente.
Compreende-se, por isso, que a ordem jurídica se preocupe com esse
tempo alienado, isto é, com determinar que tempo será esse e quanto
tempo será esse. E, a este propósito, devemos começar pela Constituição
da República Portuguesa (CRP): todos os trabalhadores têm direito «ao
repouso e aos lazeres, a um limite máximo da jornada de trabalho, ao
descanso semanal e a férias periódicas pagas», lê-se no seu art. 59.º, n.º 1,
al. d); e o n.º 2, al. b), do mesmo preceito acrescenta incumbir ao Estado
1 Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
2 Livro do Desassossego, Obra Essencial de Fernando Pessoa, I, Assírio & Alvim, Lisboa,
2006, p. 46 (itálico nosso).
3 A Geração da Utopia , 7.ª ed., Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2004, p. 191.
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«a fixação, a nível nacional, dos limites da duração do trabalho».
Trata-se, aliás, de preocupações que acompanham o Direito do Trabalho
desde o seu nascimento: limitar o tempo de trabalho, proteger o equilíbrio
físico e psíquico do trabalhador, tutelar a sua saúde, garantir períodos de
repouso para este, salvaguardar a sua autodisponibilidade, assegurar a
conciliação entre o trabalho e a vida pessoal e familiar conciliação esta
que surge também como um desiderato constitucional, nos termos do
art. 59.º, n.º 1, al. b), da CRP, analisando-se num dos deveres a cargo do
empregador na relação laboral (art. 127.º, n.º 3, do Código do Trabalho,
segundo o qual, «o empregador deve proporcionar ao trabalhador
condições de trabalho que favoreçam a conciliação da atividade
profissional com a vida familiar e pessoal») , enfim, criar e preservar a
própria noção de tempo livre, de tempos de não trabalho durante a
vigência do contrato que não se reduzam aos períodos indispensáveis ao
sono reparador.
Nesta matéria, a lei portuguesa assenta no binómio tempo de
trabalho/período de descanso, sendo certo que o tempo de trabalho
compreende dois módulos diferentes: o tempo de trabalho efetivo
(art. 197.º, n.º 1, do CT) e os períodos de inatividade equiparados a tempo
de trabalho (as interrupções e os intervalos previstos no n.º 2 do
art. 197.º)4; por sua vez, aquele tempo de trabalho efetivo corresponde,
não apenas ao desempenho da prestação («período durante o qual o
trabalhador exerce a atividade»), mas também ao tempo de
disponibilidade para o trabalho («ou permanece adstrito à realização da
prestação»)5. Por seu turno, o chamado «período de descanso» é
recortado negativamente pela lei, consistindo, nos termos do art. 199.º do
CT, em todo aquele que não seja tempo de trabalho.
Depois de esclarecer o que se entende por tempo de trabalho e
por período de descanso, a lei procede à organização da dimensão
temporal da prestação recorrendo a um conjunto de conceitos operatórios
básicos, dos quais cumpre destacar os dois que seguem:
i) Per íodo normal de tr abalho (art. 198.º) tempo de trabalho
4 Trata-se, por exemplo, de interrupções de trabalho por motivos técnicos, climatéricos ou
económicos, pausas impostas por normas de segurança e saúde no trabalho, para
satisfação de necessidades pessoais inadiáveis do trabalhador, etc.
5 Como se vê, o conceito técnico-jurídico de tempo de trabalho não coincide com o
conceito naturalístico de tempo de trabalho.

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