Meritocracia para quem? A integração equitativa do negro no mercado de trabalho: uma visão a partir da dignidade da pessoa humana

AutorEduardo Henrique Raymundo von Adamovich e Alexander Heleno Braz
Páginas71-88
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MERITOCRACIA PARA QUEM?
A INTEGRAÇÃO EQUITATIVA DO NEGRO NO MERCADO
DE TRABALHO: UMA VISÃO A PARTIR DA DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA
Eduardo Henrique Raymundo von Adamovich1
Alexander Heleno Braz2
Introdução
A escravidão é, antes de tudo, uma negação da razão. Mais que
um triste traço da Humanidade. Não se sustenta à luz da razão que
enxerga, naturalmente, todos os seres humanos como iguais no seu direito
à vida e à busca da felicidade. Para enfrentar o tema em sua perspectiva
mais recente, é preciso, antes de tudo, distinguir a escravidão na
Antiguidade da escravidão a partir do período colonialista na
Modernidade3. Se a primeira pode ter alguma explicação, talvez se possa
dizer que decorria de fatores econômicos, a inexistência da máquina para
ser empregada na produção de bens e serviços, e de fatores militares, a
dominação dos povos conquistados e a escravização de grandes
contingentes deles, como os judeus no Egito ou os eslavos4 pelos
1 Professor Associado da Faculdade Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
UERJ; Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região.
2 Mestrando em Direito do Trabalho e Previdenciário pela UERJ (2021). Especialista em
Direito e Processo do Trabalho pela UCAM-RJ. Graduado em Direito pela Universidade
do Grande Rio. Sócio do Escritório Braz & Medeiros Advogados. Membro da Comissão
de Direito do Trabalho da Associação Brasileira de Advogados do Rio de Janeiro.
3 Para algumas visões sobre essa comparação entre a escravidão na Antiguidade e na
Modernidade, consultem-se, por exemplo: SCHIAVONE, Aldo. Uma Histór ia Rompida
Roma Anti ga e Ocidente Moderno, trad. Fábio Duarte Joly. São Paulo: EDUSP, 2005;
JOLY, Fábio Duarte. A escr avidão na Roma antiga Política, economia e cultura. São
Paulo: Alameda, 2005; CARDOSO, Ciro Flamarion S. Tra balho compulsório na
antiguidade Ensaio introdutório e coletânea de fontes primárias. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Graal, 2003; FINLEY, Moses I. Escra vidão antiga e ideologia moderna, trad. Norberto
Luiz Guarinello. Rio de Janeiro: Graal, 1991.
4 Cu rioso notar a identidade etimológica, em muitas línguas modernas, entre os termos
“eslavo” e “escravo”.
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romanos, a segunda enfrenta grandes dificuldades de ser explicada do
mesmo modo.
Dizer que o tráfico negreiro das recém-conquistadas colônias na
África para as Américas era um negócio lucrativo e que dele dependia a
produção agrícola que então se organizava deste lado do Atlântico é
pouco, para explicar um movimento migratório forçado de proporções
gigantescas e difícil justificação racional, mesmo em termos políticos e
econômicos e à luz da própria razão daqueles tempos. Assim como
parece equivocado interpretar que a Filosofia Antiga era incapaz de
enxergar cidadãos e escravos como seres naturalmente iguais, encarado
esse termo “natural” no seu sentido próprio, isto é, físico e biológico5,
não é menos errado supor que na Modernidade não houvesse, sobretudo
nos primeiros regimes liberais, grande dificuldade teórica de justificação
e enquadramento filosófico da escravidão6.
A lógica que presidiu o tráfico negreiro passava pela exploração
das contradições entre as diversas tribos e sociedades africanas de então,
com a finalidade de cooptar lideranças locais para colaboração na
empreitada escravocrata, de forma semelhante àquela que fizeram os
colonizadores com os índios no Brasil dos primeiros tempos da Colônia,
procurando estabelecer relações com as diversas lideranças e explorando
suas contradições internas, para obter auxílio, sobretudo, na devastação
de florestas inteiras e no embarque de um volume de madeira e bens
naturais impensável de ser cumprido pelos colonizadores sozinhos. Trata-
se de lógica perversa de dominação, ela sim, talvez, o ponto central da
escravidão. A dominação e a instrumentalização de contingentes
humanos imensos, em ambos os lados do Atlântico e numa época em que
5 P arece mais p róprio compreender que quando os antigos tratavam a escravidão como
natural, faziam-no no sentido social de naturalidade e não naquele outro físico-
biológico, dada a concepção jurídico-filosófica da época, que tomava as estruturas
econômicas e sociais como dados pré-existentes e que não era função do Direito alterar,
mas unicamente prover para que assim permanecesse pacificado. Para uma visão da
escravidão à luz do pensamento filosófico antigo, consulte-se GARNSEY, Peter. Ideas of
slavery from Aristotle to Augustine. Reimpressão. Cambridge: Cambridge University
Press, 1999.
66 Caracterizando-se as Revoluções Liberais, sobretudo, pela tentativa de impor uma nova
ordem jurídica racional (razão kantiana), a dificuldade de justificação da escravidão era já
evidente. Para essa dificuldade na experiência norte-americana, consulte-se, por exemplo,
LEPORE, Jill. These Tr uths A History of the United States. Nova Iorque: W. W.
Norton, 2019, caps. I a IV.

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