A dogmática do Tribunal de Justiça de São Paulo na prática a teoria é outra

AutorMauricio Stegemann Dieter e Beatriz Garcia de Andrade e Silva
Páginas547-581
547
A DOGMÁTICA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO
NA PRÁTICA A TEORIA É OUTRA
Mauricio Stegemann Dieter1
Beatriz Garcia de Andrade e Silva2
Resumo: O presente artigo tem por objeto a Dogmática do Tribunal do
Estado de Justiça do Estado de São Paulo, definida como o sistema de
imputação próprio do Tribunal articulado em categorias analíticas
distintas daquelas típicas da teoria do delito. Tal sistema está ancorado
em modelo clássico de Direito Penal e no paradigma positivista que
informa o Direito Penal do Autor.
Palavras-chave: teoria do delito; dogmática; tribunal.
1. Introdução
Este artigo sintetiza uma recente investigação sobre a qualidade
técnica da prática forense do Tribunal de Justiça de São Paulo a partir
de uma amostra significativa de acórdãos em matéria penal.3
1 Professor do Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
2 Bacharela em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, com
período de intercâmbio na Ludwig-Maximilians Universität München
3 A pesquisa empírica, realizada entre 2020 e 2021, fez análise qualitativa de 112 (cento
e doze) acórdãos obtidos no sítio virtual do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
julgados entre 2018 e 2019. Foram selecionados acórdãos que decidem sobre diversos
crimes, para que toda a teoria do delito pudesse ser investigada, mas sem que
problemas de parte especial se destacassem. Assim, foram selecionados os crimes de
lesão corporal grave, roubo qualificado pelo resultado morte (latrocínio), furto,
estupro, homicídio culposo, abandono material e falsidade ideológica. O retorno da
busca no sítio virtual foi submetida a uma triagem manual para excluir acórdãos que
não decidiam sobre problemas de imputação e, posteriormente, a um sorteio, para que
houvesse distribuição proporcional entre os diferentes tipos de injusto em cada Câmara
Criminal criminal. Nesta amostra, observou-se que pouca ou quase nenhuma
548
A pesquisa que tem por referência buscou três objetivos.
Primeiro, identificar a dogmática concreta dos gabinetes, isto é,
encontrar as principais abstrações teóricas inspiradas no conceito
jurídico de crime e efetivamente utilizadas pelos desembargadores
paulistas para resolver o problema da imputação típica na passagem do
fato à norma. Esse acúmulo permitiu encontrar reiteradas remissões a
certos significantes penais clássicos, formando alguns padrões mais ou
menos estáveis, a ponto de permitir generalizações.
Em seguida, fez-se a comparação entre essas categorias gerais
aplicadas nos acórdãos, tal como manejadas pela jurisprudência, e o
mais rigoroso (no sentido estritamente científico do termo) modelo
analítico de fato punível, consoante o relativo consenso universitário,
como forma de aferir a qualidade técnica da prestação jurisdicional.4
Por fim, fez-se uma depuração daquilo que o Tribunal, em sua
atividade cotidiana, frequentemente utiliza para fundamentar suas
decisões, mas que não pode ser compreendido dentro do conceito
jurídico de crime, tamanha a distância entre o uso corriqueiro e a
definição técnica das categorias invocadas. Estes conceitos, reunidos
sob o nome mais geral de “categorias próprias” da dogmática do
Tribunal, serão expostos na terceira e última parte do texto.
Os resultados foram desanimadores, tanto para a ciência quanto
para democracia, e serão expostos seguindo a ordem comum desses
conceitos na apresentação didática do crime como ação ou omissão
típica, antijurídica e culpável, diferenciando os elementos da
tipicidadade, antijuridicidade e culpabilidade de forma ordenada,
dogmática penal tal qual conhecemos como teoria do delito era aplicada pelos
desembargadores do TJSP, de forma que necessário investigar o cerne duro de como
articulava-se a teoria do delito no processo decisório do Tribunal. A partir dessa
análise, foi modelado o sistema de imputação da Dogmática do Tribunal, a partir de
categorias auto rais para dar conta do que o TJSP articula como teoria do delito. O
presente artigo expõe, justamente, tal sistema de teoria do delito manejado p elo
Tribunal.
4 O que se entende aqui por melhor doutrina é o corpo teórico em matéria jurídico-
penal desenvolvid o com coerência epistemológica, honestidade intelectual,
pluralidade de fontes, integridade conceitual e densidade reflexiva, especialmente nos
últimos 50 anos, no Brasil (destacando-se Juarez Cirino dos Santos, Juarez Tavares e
Nilo Batista), na América Latina (em particular, Argen tina) e no exterior
(notadamente, Alemanha e Espanha).
549
seguindo o sistema tripartido do fato punível desenvolvido pela
dogmática com o objetivo de fixar os requisitos teóricos que limitam a
possibilidade de exercício da competência punitiva do Estado sobre o
indivíduo. O início, portanto, se dá no no âmbito do tipo de injusto e,
nele, nos supostos para atribuição do tipo objetivo.5
2. O Tipo de Injusto
2.1. Nexo entre Ação e Resultado: A Causalidade Biológica e a
Inexistente Imputação Objetiva
O respeito à chamada teoria da equivalência de condições é o
mínimo que se exige para a pesquisa da determinação causal pelo
resultado típico no Direito Penal brasileiro.6 Na dogmática do Tribunal,
entretanto, sequer esse lastro é observado: entende-se por (ou melhor,
confunde-se com) causa somente aquilo que tenha sido apresentado nos
autos como indicativo da materialida de do crime.
Ao falhar em distinguir em distintos níveis (empírico e abstrato)
o nexo de causalidade e a mater ialidade do crime este, por sua vez,
elemento da justa causa e, portanto, condição para o início de um
processo penal o Tribunal adota (conscientemente ou não) uma
causalidade biológica, isto é, uma concepção unitária entre causalidade
e materialidade, em que aquela se afirma pela mera existência desta:
para os desembargadores, em síntese, o nexo de causalidade entre ação
5 Fórmula que segue o sistema conhecido como “LISZT-BELING”, em referência aos
autores aos quais é atribuído o mérito de fundar as bases da moderna teoria do delito,
ou do fato punível, conforme BUSTOS RAMÍREZ, Juan J. e MALARÉE, Hernán
Hormazábal. Lecciones de Derecho P enal, vol.2, p.15-16, e aos q uais pode-se incluir
também RADBRUCH, conforme CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal, p.
75-76. Outros autores indicam o início desta teoria do delito em FEUERBACH, como
vemos em TAVARES, Juarez. Culpa bilidade, p.145 ou ainda em IHERING, conforme
FRISCH, Wolfgang. Delito y sistema del delito, p.230.
6 Conforme exigência legal do art. 13 do Código Penal. Para essa teoria, lastro mínimo
para definição do nexo de causalidade e não imune a críticas, causa é toda condição
que, excluída hipoteticamente (pois impossível reconstruir o curso causal concreto),
exclui também o resultado típico. Detalhes e crítica em CIR INO DOS SANTOS,
Juarez. Direito Penal: parte geral. 7ª ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p.
121-122.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT