Reflexões sobre a ontologia da conduta penal na perspectiva filosófica

AutorJorge Câmara
Páginas145-170
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REFLEXÕES SOBRE A ONTOLOGIA DA CONDUTA PENAL
NA PERSPECTIVA FILOSÓFICA
Jorge Câ mara 1
Resumo: A teoria da conduta se apresenta como eixo essencial da
imputação criminal. Sua relação com o princípio da culpabilidade,
considerado este como princípio fundamental limitador do exercício do
poder punitivo, estabelece a necessidade de um cotejamento entre a
teoria finalista e as modernas teorias funcionalistas. Tal cotejamento
encontra na fenomenologia, enquanto método de evidenciação das
essências, um instrumento que permite a adequação da técnica penal
aos imperativos de justiça correlatos à busca pela verdade dos
enunciados jurídico-penais. Busca-se a aproximação ontológica da
teoria finalista pelo método fenomenológico ao correto entendimento
do que se pode dizer sobre imputação para assegurar o alcance da
efetiva aplicação do direito penal nas sociedades democráticas.
Palavras-chave: Princípio da culpabilidade, ontologia penal,
funcionalismo e fenomenologia.
A estrutura de imputação adotada pelo direito penal brasileiro,
em razão das conquistas decorrentes de processos históricos pelos quais
passou, é inexoravelmente tributária de um sistema de garantias que, a
meu ver, tem seu ápice no princípio da culpabilidade. Deduzido do
brocado Nullum crimen, nulla poena, sine culpa, o referido princípio
erige-se em garantia maior contra a utilização do direito penal enquanto
um instrumento que se preste a controle sociopolítico despótico de
estruturas de poder. Por ele tem-se que a responsabilidade pessoal, de
índole subjetiva, é a condição de legitimação para a normatividade
1 Professor de Direito Penal Uerj. Global Fellow Boston College Law School. Mestre
em Direito pela UERJ. Doutor em Filosofia pela UFRJ.
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jurídica penal. Com essa perspectiva, concretiza-se a condição primária,
para que se cumpra a aspiração máxima a que o direito penal pode
aspirar, a de ser útil para racionalmente possibilitar a coexistência
obrigatória2 (ZAFFARONI, 2007, p. 320).
Relegar a noção de justiça penal, como pretendem certas
escolas, apenas a aspectos consequenciais do delito, como a retribuição
e formas preventivas que legitimem o direito penal, não atende, como
veremos, a noção de cidadania democrática.
Aqueles que incorrem em delitos são também parte efetiva da
sociedade política que outorga o poder constitutivo da nação, posto
emanar este do povo sem exceções3, cria-las, a partir de uma concepção
excludente de justiça penal (como ocorre na hipótese puramente
retributiva) é verdadeira disenfranchisement4 . A necessidade de
garantia assim erige-se no estabelecimento de requisitos subjetivos para
qualquer pretensão imputativa. Ou seja, embora tais requisitos em
princípio não tenham o condão de afastar a discricionariedade
implicada na produção normativa de natureza penal incriminatória,
como é feito, em tese, pelos princípios da lesividade e da exclusiva
proteção de bens jurídicos, ao menos reduzem o alcance de seu uso
arbitrário ao exigir que a imputação, como ato concreto estatal de
responsabilização penal, seja balizada pela concorrência do agir
deliberado do imputado.
Sem pretensão a um inoportuno aprofundamento teórico do
princípio da culpabilidade e de seu viés ôntico, convém aduzir as
considerações de Figueiredo Dias, para quem “as exigências para
constatação desta culpa radicam na realização, desenvolvimento e
promoção do ser-livre, do ‘meu’ e do dos ‘outros’, e a “culpa reside na
2 ZAFFARONI, Eugênio Raul e PIERAN GELI, José Hen rique. Manual de Dir eito
Penal Bra sileiro, Parte Geral. 7ª ed. São Paulo: RT, 2007, p. 320
3 “Art. 1º (...) Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio
de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Constituição
da República Federativa do Brasil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_
03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em 25 de abril, 2022.
4 Disenfranchisement: Desoneração, no primeiro sentido diz, respeito à exclusão
virtual de pessoas de certas questões substantivas da agenda política ordinária.
Cambridge Law Dictionar y. Disponível em: https://dictionary.cambridge.org/dictiona
ry/English/law. Acesso em: 26 de abril, 2022.

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