O Incêndio da Catedral, da Modernidade e do Direito do Trabalho

AutorJosé Affonso Dallegrave Neto
Páginas193-197
O INCÊNDIO DA CATEDRAL, DA MODERNIDADE
E DO DIREITO DO TRABALHO
José Affonso Dallegrave Neto
(1)
(1) Mestre e doutor em Direito pela UFPR. Pós-doutor pela Universidade Nova de Lisboa. Advogado. Membro da Academia Brasi-
leira de Direito do Trabalho.
1. O ABALO DE TRÊS GERAÇÕES HISTÓRICAS
Um dos mais importantes filósofos do século dezenove,
Georg Hegel, ficou conhecido por nominar os ciclos da his-
tória. O ato de periodizar nunca foi desprovido de neutrali-
dade, a exemplo do que fez o historiógrafo inglês, William
Robertson, um século antes, ao se referir à idade medieval
como “tempos sombrios” (dark ages). Assim fez para se con-
trapor ao Iluminismo e seu novo tempo racional de vasta
produção cultural. Outro especialista em Idade Média, Ja-
cques Le Goff, advertiu que a imagem positiva ou negativa
de um período está sujeita à alteração no tempo, conforme
aconteceu justamente com a revalorização da era medieval,
a partir da publicação da obra: O Corcunda de Notre-Dame,
escrito em 1831. Nela, Victor Hugo descreve personagens
de diversas classes sociais, que se cruzavam dentro e ao re-
dor da catedral, no ano de 1482. A época retratada neste ro-
mance é a do Renascimento, período em que Jules Michelet
nominou “retorno à vida”. Foi nesse tempo que Cristóvão
Colombo, dez anos depois, iria descobrir a América, com
destaque para três eventos: início da mundialização; e vitó-
ria do povo contra as monarquias absolutistas; e ascensão do
homem como protagonista da mudança.
A Idade Média produziu algumas obras-primas, sobre-
tudo na pintura decorativa dos pergaminhos (iluminura),
nos afrescos franciscanos de Assis ou da igreja de Santa
Croce, em Florença, pintados pelo artista Giotto, ao final
do século XIII. Segundo o historiador Le Goff, só não hou-
ve maiores conquistas da arquitetura religiosa porque as
crises financeiras, os efeitos da peste e das guerras acaba-
ram por secar as fontes de financiamentos das catedrais
(muitas delas inacabadas). Na era medieval, também se
verificou uma extensão do latim clássico como língua dos
clérigos e a célebre revolução gótica do século XII: igrejas
compostas de altas colunas, muitas aberturas externas de
luz e arcos quebrados capazes de sustentar o peso dos te-
lhados em substituição às paredes maciças, pilares grossos
e arcos redondos das igrejas românicas e seus interiores
sombrios. A Catedral de Notre-Dame, iniciada em 1163,
é emblemática do estilo gótico, assim chamado, de forma
pejorativa, pelos enciumados pensadores da Renascença
italiana. Gótico é, pois, uma referência preconceituosa às
igrejas católicas construídas na (Baixa) Idade Média, tendo
a palavra o (injusto) sentido de algo bárbaro e tosco.
A tradição teocêntrica (Deus no centro do universo)
somente foi rompida, em definitivo, com o Iluminismo do
século XVIII. O período Renascentista que o antecedeu fez
a integração da quadra medieval aos novos elementos hu-
manistas, da beleza, da anatomia, das artes e do retorno
(desta vez) mais intenso do pensamento grego antigo. Po-
de-se dizer que a chegada da Idade Moderna foi marcada
pela Revolução Francesa (1789), cujos tumultos sacudi-
ram a Catedral em comento. Antes disso, contudo, verifi-
cou-se o esgotamento da Escolástica; método que entre os
séculos IX e XVI prevaleceu nas universidades europeias,
com destaque para a Summa Theologica, de São Tomás de
Aquino (1225-1274). Bem antes deste frade do Reino da
Sicília, tivemos outro expoente da (Alta) Idade Média: San-
to Agostinho (354-430), bispo de uma província romana
da África. Ambos ensinaram com afinco, conciliando fé
cristã e pensamento racional grego. Agostinho mais imbri-
cado em Platão; Tomás de Aquino, em Aristóteles.
Tudo indica que a palavra “bruxa” surgiu na menciona-
da Summa Theologica, em que Aquino referia-se à mulher
que fazia pacto com o diabo. Logo, a expressão “caça às
bruxas” foi, em certa medida, um movimento misógino de
perseguição às heréticas, iniciado no século XIII durante
a Santa Inquisição da Igreja. Contudo, o seu apogeu ocor-
reu na Renascença do século XV. O manual de repressão
mais famoso foi publicado em 1486, “Martelo das bruxas”.
Neles os alemães dominicanos, Kraemer e Sprenger, com-
pilaram fundamentos de perseguição religiosa. Beneficia-
dos pela recente invenção das prensas de tipos móveis de
Gutenberg, este livro teve dezenas de edições. Alguns anos
antes, em 1431, a jovem líder da Guerra dos Cem Anos
(célebre conflito entre França e Inglaterra) foi vítima dessa
perversidade. Joana d’Arc tinha apenas 19 anos quando foi
queimada em praça pública. Somente séculos mais tarde é
que a igreja percebeu a injusta condenação, convertendo-a

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