O instituto da desconsideração inversa da personalidade jurídica e a busca por uma forma proporcional, razoável e eficiente de sua aplicação

AutorJuliana Gontijo/Felipe Gontijo Soares Lopes
Páginas445-464

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1 A desconsideração da personalidade jurídica

A desconsideração da personalidade jurídica é o instituto para, quando conigurado abuso da personalidade jurídica, afastar, episodicamente, a autonomia patrimonial da sociedade para responsabilizar o sócio administrador por obrigações contraídas pela sociedade.

É importante ressaltar que é muito comum, como alertam Fábio Konder Comparato3e Pablo Stolze4, a confusão doutrinária e jurisprudencial entre desconsideração da personalidade jurídica e a despersonalização:

O rigor terminológico impõe diferenciar as expressões: despersonalização, que traduz a própria extinção da personalidade jurídica, e o termo desconsideração, que se refere apenas ao seu superamento episódico, em função de fraude, abuso ou desvio de inalidade.

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A teoria da desconsideração da personalidade jurídica (Disregard of Legal Entity ou lifting the corporate veil) se inicia pela jurisprudência. Segundo o professor Fábio Ulhoa5, foi Rolf Serick o principal sistematizador da teoria, em sua tese de doutorado defendida perante a Universidade de Tübingen na Alemanha, em 1953. Outros autores já haviam se dedicado ao tema, mas não se encontra clara-mente nos estudos precursores a motivação central de buscar deinir os critérios gerais que autorizam o afastamento da autonomia das pessoas jurídicas.

Continuando seus ensinamentos, Fábio Ulhoa Coelho ainda traz histórico do instituto, reconhecendo que foi o Prof. Rubens Requião quem trouxe a teoria da desconsideração da personalidade jurídica para o Brasil, em uma conferência na Universidade Federal do Paraná, publicada na Revista dos Tribunais 410/12, sob o título “Abuso de Direito e Fraude através da Personalidade Jurídica (Disregard Doctrine)”.

Só no inal dos anos 1960 a teoria passou a ser estudada e aplicada em nosso país. Inicialmente, a desconsideração da personalidade jurídica tinha como fundamento os princípios que vedam o abuso do direito e da fraude contra credores. A positivação se deu muito posteriormente no Direito Brasileiro, na seguinte ordem cronológica: Código de Defesa do Consumidor (artigo 28 da Lei 8.078/906); Lei Antitruste (artigo 18 da Lei 8.884/947, revogada pela Lei
12.529/2011, que regulamentou a desconsideração da personalidade jurídica em

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seu artigo 348), Lei do Meio Ambiente (artigo 4º da Lei 9.605/989), Código Civil de 2002 (artigo 5010), Novo Código de Processo Civil (artigos 133 a 13711).

No Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, o entendimento é de que se aplica a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica12, não podendo o risco empresarial normal ser suportado por terceiro. O mero inadimplemento já é suiciente para se afastar, episodicamente, a personalidade jurídica e responsabilizar o patrimônio pessoal do sócio.

O Código Civil de 2002 traz como requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica, em seu artigo 50, o desvio de inalidade (teoria subjetiva)

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ou a confusão patrimonial (teoria objetiva). Assim, não basta o mero inadimplemento, é necessário comprovar a fraude ou abuso da personalidade jurídica para sua desconsideração13.

O Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105 de 2015, traz no Título III, da Intervenção de Terceiros, do Livro III, dos Sujeitos do Processo, da Parte Geral, o Capítulo IV dedicado à regulamentação do Incidente da Desconsideração da Personalidade Jurídica. O Novo Código não trouxe nenhuma novidade material, airmando que o pedido observará os pressupostos previstos em lei. Contudo, a regulamentação muito superior a todos os dispositivos anteriores expõe a relevância do tema no contexto atual.

2 A desconsideração inversa da personalidade jurídica

A desconsideração pode ocorrer, ainda, em sentido inverso, ou seja, no de responsabilizar a sociedade por atos do seu controlador, quando demonstrada confusão patrimonial de fato entre seu sócio largamente majoritário e a pessoa jurídica.14

Portanto, em sua origem, a justiicativa para a desconsideração inversa da personalidade jurídica vem da tradicional alter ego doctrine ou alter ego liability, mas aplicada de forma reversa, para responsabilizar a sociedade por dívidas de seu sócio. Nesses casos, a pessoa jurídica pode ser considerada alter ego (“o outro eu”) do sócio.

Assim, quando o sócio se utiliza da sociedade como um escudo protetivo, ocultando seus bens pessoais no patrimônio da sociedade para prejudicar terceiros, é possível a desconsideração inversa, que consiste em alcançar os bens da própria sociedade para reparar ato fraudulento praticado pelo sócio.15

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A fraude que a desconsideração invertida coíbe, portanto, é basicamente um desvio de bens: quando o devedor usufrui diretamente do patrimônio que não é de sua propriedade, mas da sociedade controlada por ele.16A Ministra do Superior Tribunal de Justiça, Fátima Nancy Andrighi, em palestra proferida na Primeira Semana do Consumidor, Faculdade de Direito da UNICEUB, em 18 de março de 2004, assim lecionou17:

Nessa modalidade, ao invés de o sócio esvaziar o patrimônio da pessoa jurídica para fraudar terceiros, ele esvazia o seu patrimônio pessoal e o integraliza total-mente na pessoa jurídica. Após esse artifício, o sócio, pessoa natural, cujo patrimônio restou esvaziado, exerce a atividade comercial em seu nome próprio, e não em nome da pessoa jurídica, com o nítido intuito de fraudar terceiros. Aqui a hipótese é inversa, isto é, se desconsidera a pessoa natural para responsabilizar a pessoa jurídica pelos atos praticados por seu sócio.

As notícias dos primeiros julgados sobre desconsideração inversa da personalidade jurídica datam do século XIX. Um dos primeiros casos sobre o tema é o do “First National Bank of Chicago v FC Trebein Co.”, de 1898, citado pelo Professor José Lamartine Corrêa de Oliveira em sua clássica obra “A Dupla Crise da Pessoa Jurídica”.18Conta o ilustre professor, que é citado por Fábio Konder Comparato em sua obra “O poder de controle na sociedade anônima”, que o Sr. F. C. Trebein, devedor insolvente, constituiu com a mulher, a ilha, o genro e o cunhado, uma pessoa jurídica à qual transferiu todo seu patrimônio. Das seiscentas quotas da sociedade, somente quatro não lhe pertenciam. No caso, a Corte decidiu, favoravelmente à pretensão dos credores de Trebein, que desejavam executar o patrimônio da sociedade. O julgado desconsiderou a personalidade jurídica de maneira inversa para responsabilizá-la pelas dívidas pessoais do sócio: “A transfe-

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rência do patrimônio do devedor para a sociedade era, no caso, tão pouco relevante quanto seria o fato de o devedor mudar de roupa”.

Enquanto o primeiro julgamento nos EUA é do século XIX, no Brasil, a temática da desconsideração inversa é muito recente, sendo o primeiro acórdão do STJ do século XXI. Trata-se do REsp 948.117/MS, julgado pela Terceira Turma, em 22/6/2010, de relatoria da Min. Nancy Andrighi, 112 anos após o julgamento do caso Trebein.

Destaca-se que o Novo Código de Processo Civil previu expressamente a possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica em sentido inverso, no § 2º do Art. 13319.

3 O posicionamento do stj sobre a desconsideração inversa da personalidade jurídica

Desde então, o STJ tem posicionamento mais do que consolidado sobre a desconsideração inversa da personalidade jurídica. Apenas no ano de 2014 foram 67 decisões monocráticas sobre o tema contra apenas 4 acórdãos, independentemente de análise de mérito, uma vez que nenhum dos 4 acórdãos entrou no cerne da questão.

Seguem 4 casos julgados num intervalo de 20 dias, todos no mês de setembro de 2014, com um breve resumo do que foi decidido. Foram quatro diferentes ministros, pelo que é possível perceber como está consolidada a uniformidade do posicionamento do STJ:
Resp 1466452, Min. Herman Benjamin, Decisão Monocrática DJe 22/9/2014:

A situação em que se indica a ocorrência de fraude deve estar revestida pela robustez, para não resultar em abuso estatal.

AREsp 565403, Min. Marco Aurélio Bellizze, Decisão Monocrática DJe 11/9/2014:

A sócia abandonou o débito da sociedade impago e constituiu outras duas sociedades, no mesmo ramo, utilizando-as para fazer seu giro comercial e continuar auferindo lucros. A constituição de novas pessoas jurídicas não pode ser utilizada para descumprir obrigações anteriores.

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AREsp 568647, Min. Luis Felipe Salomão, Decisão Monocrática DJe 4/9/2014:

Inexistência de prova de qualquer situação de fato que justiique o desvirtuamento da proteção à responsabilidade patrimonial excepcional da empresa que não integra o polo passivo da execução. Decisão que, ademais, facultou ao exequente a penhora das quotas pertencentes ao executado, com relação à mesma empresa.

AREsp 488946, Min. Antônio Carlos Ferreira, Decisão Monocrática DJe 2/9/2014:

Diiculdade de encontrar qualquer bem do devedor, comparada aos gastos que ele airma ter mensalmente, somada à considerável pensão alimentícia que ele paga aos ilhos, são indícios suicientes de que o devedor se vale da pessoa jurídica para frustrar os seus credores. Possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica em sua modalidade inversa.

4 Breves considerações sobre o caso CAOA

Quando analisamos a desconsideração inversa, sabemos que os credores do sócio dispõem de caminho indireto para a satisfação de suas pretensões, podendo penhorar inclusive as participações...

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