Novos paradigmas do acolhimento institucional e os órfãos de pais vivos

AutorJadir Cirqueira de Souza
Páginas427-443

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1 Introdução

O presente artigo objetiva demonstrar a nova forma de atuação do sistema de proteção integral e de defesa prioritária e absoluta do direito à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes, antes, durante e após o acolhimento institucional, nos termos da Lei n. 12.010/092, que incorporou várias disposições ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), bem como da Constituição Federal de 1988 (CF).3Tornou-se lugar comum airmar que, com a vigência da CF e do ECA, crianças e adolescentes assumiram a qualidade de titulares de direitos e deveres na ordem jurídica e que, ao lado dos novos direitos fundamentais, relativos à vida, liberdade, dignidade etc., um dos mais importantes consiste no direito constitucional à convivência familiar e comunitária.

Assim, dentre os vários direitos fundamentais previstos na legislação em vigor, a convivência familiar e comunitária passou a ser um dos pontos centrais

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direcionadores das ações e medidas da sociedade, do Estado e da família, posto que é na base familiar que devem ser centradas as principais ações e medidas de proteção integral.

Na busca da proteção integral no âmbito familiar, a necessária atuação integrada e cooperativa do sistema administrativo municipal com os sistemas das instituições de justiça da infância e da juventude, certamente traduz uma das posturas inadiáveis na tentativa da redução do excessivo e abominável número crescente de crianças e adolescentes acolhidos institucionalmente no Brasil, normalmente por longos e intermináveis anos de angústia e sofrimento.

Não é demais lembrar, para reforçar a importância do tema examinado, que existem no Brasil mais de 35.000 crianças e adolescentes vivendo em abrigos, segundo os últimos dados divulgados nos sítios eletrônicos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).4Do outro lado, paradoxalmente, existe uma verdadeira cultura de institucionalização de crianças e adolescentes em abrigos, originária dos Códigos de Menores do século XX, que teima em manter irme suas raízes autoritárias.

Assim, para atingir o principal objetivo – mostrar que é possível reduzir o número de crianças e adolescentes em abrigos ?, será irmado doutrinariamente que as novas ações e medidas de proteção, além das medidas práticas que devem ser adotadas, dependem da ruptura paradigmática em relação à revogada política judicial menorista, posto que, secularmente, as principais ações protetivas da infância e juventude, em mais de quatro séculos, sempre foram voltadas para a retirada de crianças e adolescentes do convívio familiar e comunitário, amontoando-as em abrigos e orfanatos.

Em seguida, serão explicados os cuidados e as providências que devem ser adotadas pelas instituições de acolhimento institucional e demais operadores do sistema nas etapas necessárias de entrada, de permanência e de saída de crianças e adolescentes dos antigos abrigos ou orfanatos etc.

Serão indicados os passos e as providências administrativas da necessária municipalização da proteção integral e da conjugação de esforços entre as respectivas instâncias administrativas e judiciais de proteção integral e prioritária do direito à convivência familiar e comunitária.

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Se, de um lado, constitui grave equívoco não proteger as crianças e adolescentes violadas em seus direitos fundamentais, de outro lado, simplesmente, manter as vítimas (crianças e adolescentes) em abrigos coletivizados, tão-somente provoca o fenômeno da revitimização, inclusive com os causadores (maiores de 18 anos de idade) dos ilícitos civis, penais e administrativos permanecendo incólumes.

Enim, espera-se contribuir com o debate cientíico no sentido de qualiicar a atuação do Ministério Público, do Poder Judiciário, dos advogados e demais agentes estatais e comunitários, e, ao mesmo tempo, reduzir gradativamente o excessivo número de crianças e adolescentes, verdadeiros órfãos da lei e do próprio direito, que permanecem em abrigos por prazo indeterminado e sem quaisquer condições de retorno à família natural ou colocação em família substituta.

2 O secular tratamento coletivizado de crianças e adolescentes pobres

Por mais de quatro séculos, o Brasil praticou uma nefasta prática pseudoprotetora da infância e da juventude, denominada de institucionalização de crianças e adolescentes, outrora menores, em abrigos, asilos, patronatos, orfanatos etc. Segundo RIZZINI5, sempre com fundamentos aparentemente protetivos, menores de todas as idades, especialmente pobres e habitantes das periferias e bairros mais carentes, simplesmente eram retirados de suas famílias e encaminhados às instituições de acolhimento, de natureza pública ou privada.

Enim, trata-se de postura secular, tradicional e amplamente defensável, ainda hoje, por mais paradoxal que seja, nos meios sociais brasileiros, inclusive, ainda nos centros universitários e órgãos governamentais, além de muitas instituições religiosas e ilantrópicas.

Durante o século XX, especialmente com os dois Códigos de Menores que vigoraram entre 1927 a 1979 e até 1990, embora com avanços consideráveis, manteve-se a prática higienista de recolher os menores e interná-los, forçadamente, a partir de decisões administrativas dos Juizados de Menores que se notabilizaram pela forte repressão menorista, conforme COSTA.6

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Se antes as internações nos estabelecimentos coletivos eram de natureza privada, ilantrópica, assistencialista e sem controle do Estado, que, inclusive, defendia as práticas autofágicas, posto que jamais se comprovaram cientiicamente as vantagens da retirada forçada de crianças e adolescentes de seus lares, por mais modestos que fossem, no decorrer do século passado, assumiu a dianteira nas atividades os respectivos Juizados de Menores e a explícita aquiescência do Ministério Público, na forma das lições expostas por RIZZINI.7Com a entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 13 de julho de 1990, produto de um intenso apelo popular e ancorado nas melhores práticas internacionais, ocorreu uma clara ruptura paradigmática, na medida em que os menores, agora denominados legalmente de crianças e adolescentes, receberam a titularidade dos direitos fundamentais, abandonando-se a visão menorista que os tratava como meros objetos. O abandono da doutrina do menor em situação irregular pela moderna doutrina da proteção integral – de forma explícita e didática ? trouxe novas formas de atuação do sistema de justiça e do sistema de proteção administrativa dos novos direitos fundamentais, sobretudo a necessidade de efetivação prática dos princípios da prioridade absoluta e da proteção integral.8Enim, vive-se no Brasil, na esfera da proteção infantojuvenil, novos fundamentos, paradigmas e deveres da família, da sociedade e do Estado.

Porém, em sentido diametralmente oposto, a despeito das novas regras constitucionais e estatutárias que centram seus esforços legislativos em irmar a condição de primazia absoluta na defesa dos novos direitos das crianças, dos adolescentes e de suas respectivas entidades familiares, as práticas institucionalizadoras, que eram desenvolvidas sob o beneplácito popular, pelos órgãos e instituições sociais, especialmente igrejas e entidades privadas, receberam, perante os órgãos judiciários e ministeriais, intensa força e apoio institucional e passaram a ser desenvolvidas pelos Conselhos Tutelares.

Vale dizer: sem obedecer às regras especíicas, especialmente a Constituição Federal, entre 1990 e 2009, assistiu-se no Brasil ao recrudescimento das ações de abrigamento de crianças e adolescentes. Ou seja, ações que eram desenvolvidas

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no tecido social ganharam fortes adeptos nos Conselhos Tutelares e nos demais integrantes do sistema de proteção, segundo as palavras de BITTENCOURT.9Mais grave ainda é que, a despeito da trágica história das institucionalizações em massa praticadas pelas instituições públicas e privadas, a continuidade das ações institucionalizantes dos Conselhos Tutelares, principalmente e com a direta aquiescência do Ministério Público e do Poder Judiciário, durante os vinte anos iniciais de vigência do ECA, diga-se de passagem, repetindo-se os equívocos históricos, nas mesmas águas turvas continuam navegando vários integrantes do Ministério Público, da advocacia e do Poder Judiciário, posto que basta a aná-lise dos recentes dados relativos ao número de crianças e adolescentes em abrigos para se perceber que, a despeito da nova Lei n. 12.010/09, a quantidade de crianças e adolescentes em abrigos avança de forma constante e crescente.

Infelizmente, o desconhecimento da trágica história da proteção dos direitos infantojuvenis, a vontade de abrigar crianças, somente pobres, e o exame insuiciente das regras internacionais, da Constituição Federal, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Lei n. 12.010/09, dentre outros fatores vêm contribuindo para manter números vexatórios de crianças e adolescentes em abrigos, atualmente denominados de programas ou entidades de acolhimento institucional, segundo SOUZA.10Assim, em sentido oposto à continuada prática pertinente à manutenção dos elevados níveis de acolhimento institucional, serão destacadas as premissas jurídicas que, se empregadas corretamente, certamente, reduzirão o número de crianças e adolescentes em abrigos, posto que são enormes os malefícios sociais e psicológicos em relação à prolongada institucionalização, sendo por todos BITTENCOURT.11

3 As mudanças da lei n 12.010/09

Mesmo com as várias e exaustivas regras e princípios descritos na...

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