Responsabilidade civil nas relações familiares: controvérsias acerca da possibilidade de caracterização do dano moral por 'infidelidade' virtual

AutorJoão Victor Rozatti Longhi/Natasha Teixeira de Lima
Páginas351-375

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Apresentação

A constitucionalização do direito das famílias é uma realidade contemporânea no Brasil. Mesmo após o Código Civil de 2002, ainda é necessário o recurso a princípios e valores da Constituição Federal de modo a dar respostas jurídicas a situações não regulamentadas pela legislação. Concomitantemente, o uso maciço das Tecnologias da Informação e Comunicação também tem alterado signiicantemente o comportamento humano. A Internet é uma realidade inexorável e é natural que traga relexos em todos os campos da ciência, inclusive o Direito. Neste contexto social e normativo se insere o problema central a ser enfrentado neste artigo: a “inidelidade” virtual gera dano moral? Para tal, o trabalho passa por duas grandes partes. A primeira busca averiguar acerca da real dimensão do conceito de inidelidade do ponto de vista jurídico, dissertando acerca da dimensão atual do “dever” de idelidade no casamento e lealdade na união estável e quais os desdobramentos de sua “violação”. Além disso, busca-se também averiguar em que medida a transposição destas práticas para o ambiente tecnológico

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inlui na responsabilidade civil no âmbito das relações de família e em que medida inlui na tendência de expansão dos danos indenizáveis.

Introdução

O Código Civil brasileiro de 1916 é considerado, de forma geral, como fruto da consolidação tardia no Brasil de valores arraigados nos séculos XVIII e XIX. Individualista, patrimonialista e, no que concerne à disciplina jurídica das relações familiares, patriarcal, monogâmico e sempre associado a uma ética cristã baseada na “indissolubilidade [...] virgindade, castidade e inalidade precípua de procriação”3.

O advento do Código Civil de 2002, baseado nos cânones da eticidade, sociabilidade e operabilidade4não representou, do ponto de vista estrutural das relações familiares, grandes rupturas de paradigma. Conforme Lembra Luiz Edson Fachin: “Clama-se, e não é de agora, por um direito de família que veicula amor e solidariedade. Para isso, o novo código não nasce pronto; ao contrário, nesta matéria [relações familiares], faz rebrotar estigmas como a culpa na separação e nos alimentos”.5

Pelo contrário, a regulamentação civil do Direito de Família prevista no Código de 2002, texto normativo que orienta à composição de situações jurídicas patrimoniais e existenciais e as relações familiares entre os indivíduos, deve ser lida à luz dos princípios e valores da Constituição da República de 1988, a qual realmente permitiu uma maior abertura ao conceito de “família”. Seja pela literalidade do seu texto, seja pela interpretação que a ela tem sido dada por parte da jurisprudência.6

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No sistema constitucional brasileiro hodierno, a dignidade da pessoa humana passa a ser o vetor interpretativo máximo, garantindo maior proteção a todos os membros da família, núcleo fundamental de organização social. Nesse contexto, em que pese a noção clássica de família dotada de alta carga de fatores morais e religiosos, após o advento da Carta Maior de 1988, a constituição familiar, antes concebida no casamento, passou a reconhecer outras formas de estruturação familiar, como a união estável, a monoparentalidade, o concubinato e a homoafetividade, em observância às relações sociais contemporâneas e tendo como base o afeto, o substrato basilar das famílias. É o que Maria Celina Bodin de Moraes denomina de família democrática:

Ora, a família democrática nada mais é do que a família em que a dignidade de seus membros, das pessoas que a compõe, é respeitada, incentivada e tutelada. Do mesmo modo, a família “digniicada”, isto é, abrangida e conformada pelo conceito de dignidade humana é, necessariamente, uma família democratizada.7A disciplina da família se confundia no passado como fruto do desdobramento histórico da questão, com a disciplina jurídica do casamento8, de modo que as

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famílias, ainda que informalmente constituídas, só seriam moralmente aceitas se assemelhadas a este instituto jurídico9.

Neste sentido, há, no Código Civil, a delimitação dos chamados deveres conjugais entre aqueles que optam por constituir família. O que se discute hoje é a necessidade de observância desses deveres, chamados de efeitos pessoais do casamento. Para grande parte da doutrina, retira-se o caráter obrigatório dessas disposições, passando a ser consideradas meras faculdades.10

Dentre os deveres pessoais, destaca-se a idelidade recíproca entre cônjuges e companheiros (ainda que este último caso não seja tratado de forma expressa pelo Código, utilizando-se a expressão lealdade), de maneira que não se permitiria a existência de famílias simultâneas (não se pretende, como ins de delimitação temática, tratar do recente tema discutido pela doutrina de relações afetivas paralelas e também do Poliamorismo11), uma vez que, supostamente, a partir do momento que se delimita uma relação entre indivíduos, seria vedada a ligação amorosa com pessoa diversa da que se estava comprometido12.

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Assim, o que se questiona é até que ponto esses deveres pessoais, no meio interativo entre os indivíduos, mesmo que vistos como meras faculdades, principalmente no que concerne a idelidade recíproca, seriam irrelevantes para o Direito. O modo interativo entre os sujeitos modiicou-se sobremaneira ao longo do tempo. Os meios de comunicação revolucionaram-se principalmente com o advento da Internet em seu modelo comercial na década de 9013.

A sociedade, antes marcada pela tinta e papel, passou a ser considerada como Sociedade da Informação14, desenvolvendo-se de forma rápida, aquém de entraves temporais ou geográicos, modiicando as relações humanas de forma rápida e imprecisa.

A Internet obrigou a sociedade a se desenvolver de forma mais dinâmica, e ultrapassou limitações de conteúdo e de velocidade na troca de informações. Apesar das benesses trazidas pela massiicação tecnológica, as transformações trazidas pela Internet devem ser visualizadas de maneira mais apurada, principal-mente pelo jurista15.

O meio jurídico não tem se mostrado apto a acompanhar a complexidade das relações sociais, notadamente as ocorridas nos meios eletrônicos, faltando, assim, maior sintonia entre o aplicador do Direito e as insurgências da sociedade contemporânea. No chamado “cyberespaço”16, os sujeitos passam a desenvolver relações entre si, criando situações desvinculadas (até certo ponto) do Direito, desmistiicando conceitos. As noções clássicas jurídicas, questões empresariais ou mesmo de direitos fundamentais, transmutam-se frente a conceitos e situações emergentes.

A globalização otimizou as relações em âmbito virtual. Por meio da Internet, houve uma aproximação entre as pessoas do mundo todo, com repercussão

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em todos os âmbitos sociais, seja proporcionando maior facilidade de consumo, transmissão de informações, ou mesmo modiicação nas relações familiares.

Uma das grandes evoluções do pensamento contemporâneo, com a ajuda da antropologia e da psicanálise, foi ter trazido a compreensão de que família não é um fato da natureza, mas da cultura.17Quando se fala em relações familiares em âmbito virtual, desponta-se interessante discussão acerca da chamada “inidelidade” virtual, entendida como a quebra do dever conjugal de idelidade recíproca entre os cônjuges ou companheiros nos meios eletrônicos. Seria uma analogia à inidelidade real. De início, questiona-se se esse instituto realmente existe para o Direito, discute-se o limite interativo com pessoa estranha à relação afetiva e se cabe ao universo jurídico essa delimitação.

Tendo em vista a característica de ampla divulgação que marca os meios eletrônicos, questiona-se se a relação extraconjugal virtual seria apta a ensejar dano moral aos que foram traídos.

Embora o crime de adultério tenha sido revogado do Código Penal18, há discussão doutrinária acerca da possibilidade reparatória civil nos casos de “inidelidade” virtual. Será mesmo que é de interesse do Direito tutelar esse tipo de situação? A quebra do dever conjugal de idelidade em espaço eletrônico causa algum tipo de dano moral apto a ser quantiicado juridicamente?

O que se pretende, adiante, é um convite a um olhar mais acurado por parte do jurista, trazendo uma releitura de conceitos clássicos acoplados à insurgência virtual. Busca-se uma relexão acerca da real necessidade reparatória de supostos danos oriundos da “inidelidade” virtual e as consequências desse instituto jurídico, com interferência em questões afetas a Privacidade, Intimidade, Vida Privada e exibicionismo na Rede.

1 Decorrências jurídicas da “infidelidade”

Conforme dito, a noção de família teve suas raízes na monogamia e nos deveres conjugais normatizados pelos códigos.

[...] ainda que no plano fático se identiique a mudança no panorama da família, o tratamento jurídico acaba permanecendo um tanto quanto estanque, em razão

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do direito civil clássico cunhado pela burguesia e da alta incidência dos valores religiosos.19Contudo, contemporaneamente, o substrato da família passa a ser o afeto e o vínculo passa a ser baseado no amor20, permitindo a consideração de noções familiares diversas das codiicadas tradicionais. Essa dinâmica nas relações familiares possibilita o uso de conceitos jurídicos de forma ampla, como, por exemplo, a aplicação dos deveres conjugais, inicialmente aplicáveis tão somente ao casamento, às demais formas de relacionamento interpessoal (união estável, concubinato, namoro, noivado, dentre outros).

O artigo 1.566 do Código Civil de 2002 traz de forma expressa esses deveres conjugais, sendo eles: a idelidade recíproca; a vida em...

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