A proposta do direito do trabalho líquido e descompromissado derivado da (PÓS) modernidade e do capitalismo líquido, do hiperliberalismo e do hiperindividualismo

AutorJorge Pinheiro Castelo
Ocupação do AutorAdvogado, especialista (pós-graduação), mestre, doutor e livre docente pela Faculdade de Direito da Universidade São Paulo
Páginas54-65

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O Direito, em particular o Direito do Trabalho, é a disciplina do compromisso e da responsabilidade social, com o objetivo de administrar a insegurança derivada dos eventos patológicos (contingências, imprevistos, descumprimento da lei, atos ilícitos etc.) e não próprios da estrutura de funcionamento fisiológica da sociedade pós-moderna.

Já o Direito do trabalho líquido é a disciplina do descompromisso (entre empregadores e trabalhadores) e da irresponsabilidade social, pautado na insegurança como elemento estrutural e natural do funcionamento da sociedade de consumo (aderente ao capitalismo líquido) e da satisfação e descarte instantâneos.

A proposta do modo de trabalho ou do direito do trabalho líquido derivado do capitalismo líquido e hiperliberal está estruturada num patamar de rentabilidade e num ciclo de produção em que “não há longo prazo” para nada mais e, consequentemente, na lexibilidade, na volatilidade e na ausência de compromissos.

Essa é a nova e principal base de dominação e o principal fator das divisões sociais e da fundação do direito do trabalho líquido (e descompromissado).

Na prática, isso significa menores regras e, acima de tudo, um mercado de trabalho lexível, ou seja, um direito do trabalho líquido e descompromissado, normatizado para garantir a desregulamentação e os contratos de curto prazo, precários, temporários, intermitentes e terceirizados.

A flexibilidade e a volatilidade são os slogans da pós-modernidade líquida, do capitalismo líquido e do direito do trabalho líquido.

A flexibilidade e a volatilidade anunciam empregos e contratos sem segurança, sem compromissos ou benefícios, oferecem apenas contratos a prazo ixo ou renováveis, esse é o Direito do Trabalho Líquido da Pós-Modernidade Líquida, do Capitalismo Líquido e da empresa camaleônica.

Na falta de segurança de longo prazo, a ´satisfação instantânea´ aparenta ser uma estratégia razoável.

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As condições econômicas e sociais precárias treinam homens e mulheres a perceber o mundo como um contêiner cheio de objetos descartáveis – inclusive, os seres humanos.

E, assim, a política da precarização do direito do trabalho líquido e descompromissado conduzida pelos operadores de mercado de trabalho da pós-moderni-dade líquida e do hiperliberalismo acaba sendo apoiada e reforçada pelas políticas da vida, sejam elas adotadas deliberadamente ou apenas por falta de alternativas.

I A corrosão do caráter e do bem comum na sociedade da pós-modernidade líquida, do capitalismo líquido, do hiperliberalismo e do direito do trabalho líquido (e descompromissado)

A proposta do modo de trabalho ou do direito do trabalho líquido derivado do capitalismo líquido e hiperliberal está estruturada num patamar de rentabilidade e num ciclo de produção em que “não há longo prazo” para nada mais e, consequentemente, na lexibilidade, na volatilidade e na ausência de compromissos.

Contudo, graves e assustadoras são as consequências inais no plano pessoal do homem submetido a esse modo de trabalho, e a esse direito do trabalho líquido descompromissado (e, por isso, mesmo despótico demais para ser vivido como um direito) na medida em que acaba gerando uma humanidade doente.

As exigências da nova forma de sobreviver e desenvolver-se, na prática imposta pelo capitalismo líquido e hiperliberal e pelo direito do trabalho líquido, obrigou as pessoas a colocar “sua vida emocional, interior à deriva”.116

E o que é mais triste, diante do “aspecto fugitivo de amizade e comuni-dade local” resta às pessoas buscar “nas comunicações eletrônicas o senso de comunidade”.117

A “corrosão do caráter” é a constatação feita por Richard Sennett sobre as consequências pessoais do modo de trabalho deinido pela proposta do capitalismo líquido e hiperliberal e pelo direito do trabalho líquido e descompromissado.

II Flexibilidade

As práticas da lexibilidade, embutidas na teoria do capitalismo líquido e hiperliberal e no direito do trabalho líquido, concentram-se nas forças que dobram as pessoas.118

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O comportamento humano lexível e volátil, na perspectiva das empresas voláteis e camaleônicas e no direito do trabalho líquido e descompromissado, deve ter a mesma força tênsil das árvores. Deve estar pronto para ser adaptável às circunstâncias variáveis.119

Pode o mercado dar às pessoas alguma coisa semelhante à força tênsil de um árvore, para que os indivíduos não se partam sob a força da mudança?120

O estabelecimento do limite do tolerável da submissão do homem à produção lexível e volátil depende de como uma sociedade deine o bem comum.121

III Da ausência de confiança, lealdade e compromisso mútuo

“Não há longo prazo”, além de ser um dos lemas mais importantes na proposta do trabalho no direito do trabalho líquido, do capitalismo globalizado, líquido e hiperliberal, “é um princípio que corrói a coniança, a lealdade e o compromisso mútuo”.122

Assim, em última instância, acaba sendo traduzido, no inconsciente da pessoas, pelo mote: “mudar, não se comprometer e não se sacrificar”.123

Realmente, essa característica de caráter é introgetada na identidade das pessoas, por meio das práticas cotidianas presentes nas experiências de vida.

E, o que é pior, traduz-se no que se passa para os jovens da nossa sociedade pelo mercado, pela família e mesmo pelas universidades.124

Esse padrão de comportamento na experiência do trabalho gera um conlito interior insolúvel na vida emocional das pessoas, particularmente no que se pretende vivenciar numa vida em família, célula matriz da sociedade.

Não há a menor dúvida que o que se pretende numa relação de família é o estabelecimento de objetivos de longo prazo assegurados por laços de lealdade e de compromisso mútuo que dependem de relações estáveis para se consolidarem.

Ocorre que o comportamento que traz o sucesso ou mesmo, apenas, a sobrevivência no trabalho, termina por colonizar as relações familiares, que terminam sucumbindo à diretriz desse mundo de curto prazo.125

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IV Ausência da rotina como fio da narrativa da vida pessoal

Esse conlito entre família e trabalho impõe algumas questões sobre a experiência adulta.

Como se podem buscar objetivos de longo prazo numa sociedade de curto prazo?

As condições de vida da nova economia alimentam, ao contrário, a experiência à deriva do tempo, de lugar em lugar, de emprego em emprego.

O capitalismo líquido com os contratos de curto prazo derivados do direito do trabalho líquido e descompromissado corrói o caráter do homem, sobretudo aquelas qualidades de caráter que ligam os seres humanos uns aos outros, e dão a cada um deles um senso de identidade sustentável.126

Assim, exatamente no oposto do sustentado pela teoria hiperliberal e pelo direito do trabalho líquido e descompromissado, tendo em vista as tensões impostas pela impossibilidade de se criar uma narrativa de vida, no sistema de produção que colocou o lado humano do homem à deriva ou em estado de suspensão no tempo, é que o tempo rotinizado se tornou uma conquista pessoal.127

Admitir uma vida de impulsos momentâneos, de ação de curto prazo, sem rotinas sustentáveis, uma vida sem hábito, é admitir uma existência irracional.128

Contudo, ao que parece, o capitalismo líquido e hiperliberal e a sua proposta de um direito do trabalho líquido e descompromissado pretender levar o homem a uma existência irracional, sem ao menos lhe permitir a exata percepção de como isso ocorreu.

Realmente, tudo isso é elaborado por meio de inteligente e sutil jogo de espelhos e máscaras, no qual está inserida a subordinação mais ilegível, porém, mais acentuada.

“O sistema de poder que se esconde nas modernas formas de lexibilidade consiste em três momentos: reinvenção descontínua de instituições, especialização lexível de produção e concentração de poder sem centralização.129

A reinvenção descontínua de instituições se traduz em técnicas específicas que pautam a atuação de administradores: programas de computador padronizam procedimentos operacionais (SIMS), de forma que, mesmo numa empresa muito grande, os administradores podem iscalizar diretamente todas as célu-

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las de trabalho e verificar o que estão produzindo, capacitando-os a eliminar de pronto as unidades repetitivas ou ineicientes.130

Esses mesmos programas de computador possibilitaram a administração empresarial avaliar quantitativamente quais programas ou empregados podem ser cortados, numa proposta de ‘delayering’ (remover camadas), ou seja, de oferecer a um menor número de administradores controle sobre um maior número de subordinados.131

V Reengenharia e reinvenção descontínua das instituições e redução de empregos

A reinvenção descontínua de...

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