Responsabilidade civil e liberdade de expressão
Autor | Elsa Vaz de Sequeira |
Páginas | 57-77 |
RESPONSABILIDADE CIVIL
E LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Elsa Vaz de Sequeira
Professora da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa e coordena-
dora do Católica Research Centre for the Future of Law.
Sumário: 1. Colocação do problema. 2. Enquadramento jurídico: Natureza principiológia das normas
que preveem a liberdade de expressão, o direito à reserva da intimidade da vida privada e o direito
ao bom nome e reputação. 3. Delimitação intrínseca da liberdade de expressão, do direito à reserva
da intimidade da vida privada e do direito ao bom nome e reputação. 3.1 Liberdade de expressão.
3.2 Direito à reserva da intimidade da vida privada. 3.3 Direito ao bom nome e reputação. 4. De-
limitação extrínseca da liberdade de expressão, do direito à reserva da intimidade da vida privada
âmbito de garantia efetiva da liberdade de expressão e do direito à reserva da intimidade da vida
privada. 4.3 Delimitação recíproca do âmbito de garantia efetiva da liberdade de expressão e do
direito ao bom nome e reputação.
1. COLOCAÇÃO DO PROBLEMA1
I. A questão que se visa tratar, ainda que de forma resumida, é a de aferir até
que ponto a liberdade de expressão constitui ou poderá constituir uma causa de
justificação para os factos ofensivos da privacidade, intimidade ou do bom nome e
reputação de outrem. O mesmo é dizer que interessa averiguar se a exteriorização
de uma opinião ou a divulgação de algum facto potencialmente lesivo dos bens re-
feridos é permitida por consubstanciar o exercício de um direito. A resposta a esta
pergunta passa necessariamente pela análise da relação existente entre a liberdade
de expressão, por uma banda, e os direitos à reserva da intimidade da vida privada e
ao bom nome e reputação, por outra banda.
II. No passado, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) não só configurava se-
melhante relação como um exemplo paradigmático de uma situação de colisão de
direitos, como, no que especificamente respeita à dicotomia liberdade de expressão
1. O texto que agora se publica, e que corresponde à participação oral realizada no dia 5 de Novembro de 2020
nas IV Jornadas Luso-brasileiras de Responsabilidade Civil, em muitas partes assenta no que ao longo do
tempo fomos escrevendo sobre o tema, concretamente em: Dos pressupostos da colisão de direitos no direito
civil, Lisboa, 2004, Da Distinção entre limites extrínsecos do direito e limites extrínsecos ao seu exercício,
Estudos Dedicados ao Professor Doutor Luís Carvalho Fernandes, Lisboa, 2011, v. I, p. 441-463, Comentário
ao Artigo 335.º, Comentário ao Código Civil – Parte Geral. In: FERNANDES, Luís Carvalho e PROENÇA,
José Brandão (Coord.). Lisboa, 2014, p. 789-793, Colisão de Direitos, Cadernos de Direito Privado, n. 52,
Outubro/Dezembro 2015, Braga, p. 20-34, Teoria Geral do Direito Civil – Princípios fundamentais e sujeitos,
Lisboa, 2020, p. 47-55, e ainda, em coautoria com CORREIA, Carolina Martins. Comentário ao Artigo 484.º,
Comentário ao Código Civil – Direito das obrigações, In: PROENÇA, Brandão (Coord.). Lisboa, 2018, p.
284-289.
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ELSA VAZ DE SEQUEIRA
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/ bom nome e reputação, lançando mão do disposto no artigo 335.º do Código Civil,
tendia a reconhecer primazia a este último em detrimento do primeiro.
Isto mesmo resulta, por exemplo, do Acórdão da Relação de Lisboa, de 5 de Abril
de 20012, ao considerar a situação sub iudice representativa de uma colisão entre o
direito à honra e reputação e a liberdade de informação, reconhecendo prevalência a
este último. A Relação encetou a sua apreciação afirmando que resulta da Declaração
Universal dos Direitos do Homem, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos
e da Constituição que a liberdade de expressão e informação é limitada pelo direito
à honra e reputação. Por isso, “não se pode invocar o direito de informar quando
esteja em causa uma actividade que em concreto é intolerável, por violar o conteúdo
essencial de outro direito fundamental”. Diz o tribunal que, no caso, “ocorre um con-
flito em concreto entre o direito de personalidade na vertente da honra e reputação
e a liberdade de informação através dos meios de comunicação social de massas, a
resolver em termos de prevalência do primeiro em relação ao último”. Com efeito,
“os factos concretos provados não permitem a conclusão de que as apeladas se limi-
taram a agir no exercício do direito de liberdade de expressão, no cumprimento do
dever de informar, nos estritos limites constitucionais e com a diligência adequada”.
Em sentido semelhante se pronunciou o STJ, no seu Acórdão de 5 de Março de
19963, ao declarar que o direito de informar e a liberdade de expressão são direitos
fundamentais com limitações e restrições impostas pelas normas constitucionais e
de direito internacional, com vista à salvaguarda do direito à honra, ao bom nome e
reputação de outrem. O que vale por dizer que, em princípio, a liberdade de expressão
e informação, pelas restrições e limites a que está sujeita, não pode atentar contra
o bom nome e reputação de outra pessoa. Todavia, o Supremo veio a entender que,
no caso em apreço, havia um conflito entre as posições jurídicas envolvidas. A esta
luz, considerou que “o direito de expressão e informação não foi exercido dentro
dos limites acima assinalados, designadamente com respeito pela honra do autor e
com a objectividade e a verdade que devem ser timbre do jornalista e que a lei exige”,
julgando, por isso, “ilícita e culposa a conduta do terceiro réu relativamente a parte
dos factos”. O coletivo acabou por decidir que “o direito à liberdade de expressão e
informação tem de ser sacrificado face ao direito ao bom nome e reputação. Só assim
não seria se existisse uma causa justificativa que excluísse a ilicitude da conduta do
terceiro réu, configurada como o exercício do direito de expressão e informação”.
III. Mais recentemente, no entanto, notam-se alguma alterações no caminho
percorrido pelo STJ tanto ao nível da qualificação do problema quer no tocante à
sua resolução. O problema deixou de ser sempre qualificado como uma situação de
colisão de direitos, solucionada pelo citado artigo 335.º do Código Civil, para passar
a ser perspetivado ora como uma hipótese de delimitação intrínseca dos direitos en-
volvidos ora como um caso de limitação extrínseca ao âmbito de garantia efetiva de
2. V. CJ, ano XXVI, t. II, 2001, p. 103 e ss.
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