Autodeterminação dos povos
Páginas | 227-266 |
Capítulo VII
Autodeterminação
dos Povos
O
princípio de autodeterminação remonta a um processo político
mais amplo de armação dos direitos dos povos em face do po-
der absoluto do Estado. No cerne dessa norma, cujas dimensões
jurídica e política584 são indissociáveis, encontra-se valor a inspirar gerações ao
redor do mundo: a busca pela independência e pela autonomia política.585 As
dimensões soberanista e universalista da política exterior se confundem nesse
princípio, na medida em que a autodeterminação tanto promove a luta pela
emancipação dos povos sob dominação ou ocupação estrangeira, quanto as-
segura o direito de cada Estado decidir, como expressão da soberania popular,
sobre um modelo de organização social, política e econômica.
Autodeterminação na Assembléia Nacional Constituinte
O princípio de autodeterminação dos povos atraiu grande interesse duran-
te a Assembléia Constituinte. Presente em todo o itinerário deliberativo que
política exterior conferiu vetor fundamental à ação diplomática em favor de
povos que se encontram sob a ocupação estrangeira e o colonialismo. Várias
emendas foram apresentadas na Constituinte com o objetivo de reconhecer
584 Celso D. de Albuquerque Mello, su pra nota 3, p. 137.
585 “O processo de descoloniz ação dos territórios ma ntidos pelos países eu ropeus nas
Américas, que se de u fundamentalmente no século X IX, bem como daqueles localiza dos
na África e na Ási a, que teve lugar neste sécu lo, esteve respaldado p elo princípio de
autodeterminaçã o”. Pedro Dalla ri, supra nota 2, p. 165.
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JOÃO ERNESTO CHRISTÓFOLO
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um direito inerente e inalienável dos povos à autonomia em face da domina-
ção e da ocupação estrangeira. Ainda no projeto da Comissão Afonso Arinos,
lia-se, no inciso IV, que “o Brasil se rege nas relações internacionais pelo apoio
às conquistas de independência nacional de todos os povos em obediência
aos princípios de autodeterminação e de respeito às minorias”.586 Essa mesma
intenção esteve presente em emendas propostas com o objetivo de permitir ao
Brasil estabelecer relações diplomáticas com povos e com movimentos de li-
bertação nacional que lutavam pela autodeterminação.587 Embora a reação dos
constituintes fosse de solidariedade à luta de “movimentos libertários” pela
autodeterminação, prevaleceu o entendimento de que dispositivos especícos,
além da norma geral, eram desnecessários ou inócuos, na medida em que dis-
punham sobre capacidade já reconhecida à diplomacia brasileira.588
O constituinte também associou o princípio de autodeterminação a ou-
tros princípios do direito internacional. O repúdio ao uso da unilateral da
força, por exemplo, era visto como necessário à proteção dos princípios de
586 “Respeito às minoria s, princípio acoplado ao princípio do apoio à s conquistas de
independência naciona l de todos os povos, tal junção a presenta (...) inconveniência de mérito,
pois daria a entender que o Bra sil, no plano internaciona l, está a favorecer a independência d e
coletividades m inoritárias”. Vicente Marotta R angel, supra nota 384, pp. 2-11.
587 Ao propor emenda (00087) na Comiss ão da Soberania ao então a rt. 22, em termos aná logos
ao dispositivo da C omissão Afons o Arinos, Amaury Muller a legou que “o País não pode
se furta r do compromisso histórico de ap oiar formal e decidid amente todas as lutas de
independência naciona l, se pretende de fato ser el aos princípios d a autodeterminação
e dos direitos das mi norias”. José Genoíno propôs emenda (00550) estabelec endo que “o
Brasil manterá rela ções diplomáticas com país ocupa do pela força ou colonização, quando
este país tiver u ma entidade representativa reconhecida pelo Gover no Brasileiro”. Nelson
Wedekin (emenda 00531) sugeriu incluir dispositivo que fac ultava ao Brasil “ma nter
relações diplomática s com países ou nações coloniza das ou ocupadas pela força, desd e que
essas tenha m entidade representativa reconhecida p ela Assembléia Geral da ONU ou pelo
Governo brasileiro”. Wedekin propunh a acrescentar as “entid ades dotadas de per sonalidade
internacional em nome dos seu s povos” entre os entes do direito internaciona l público com
os quais o Brasil e stabeleceria tr atados e compromissos, ao lado de E stados soberanos,
organismos interna cionais e “associaçõe s de relevantes serv iços prestados à causa da
humanidade”. Em sua just icativa, a rmava que “Em vários momentos se ju stica esse
relacionamento, de tal modo que s eja permitido ao Brasi l assumir gestos c oncretos de
apoio à descolonizaç ão, à autodeterminação dos novos , e à força renovadora e inevitável
dos movimentos de liber tação, principalmente nos pa íses do Terceiro Mundo”. Mencionou
explicitamente dua s entidades, SWAPO, na Namíbia, e OLP, na Palestina.
588 Em seu parecer, o relator Bernardo C abral ponderou que “é um a rtigo inócuo, porque
já pode através do Min istério das Relaçõe s Exteriores manter rela ções diplomáticas”.
Diário da Asse mbléia Nacional Constituinte, Suplemento C, 27/1/1988, p. 920. O Brasil já
reconhecia a legiti midade da OLP e da SWAPO.
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AUTODETERMINAÇÃO DOS POVOS
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autodeterminação dos povos e não intervenção entre as nações.589 O princí-
pio de autodeterminação serviu ainda para articular o imperativo de defesa
da soberania nacional diante da ameaça do controle estrangeiro sobre nossa
autonomia decisória. Na visão de vários constituintes, a preservação de nossa
autodeterminação exigia o domínio pelo País de determinadas tecnologias,590
po is “a autodeterminação é um dos poderes da soberania”.
Embora não tenham sido aprovadas em sua integralidade, essas propos-
tas devem ser interpretadas no contexto axiológico mais amplo da Assembléia
Constituinte, marcado pela tensão implícita entre as dimensões universalista e
soberanista da política exterior. No contexto da redemocratização, era presen-
te o sentimento de associação da sociedade brasileira a outros povos e nações
sob dominação colonial, ocupação estrangeira, regimes de segregação racial
e ditaduras, sobretudo à luz das interferências diretas ou indiretas de potên-
cias estrangeiras no contexto geopolítico da Guerra Fria. Nessa dimensão, as
referências ao princípio de autodeterminação inspiravam-se na solidariedade
universalista de que se nutriram outros princípios positivados no art. 4º, como
repúdio ao racismo591 e prevalência dos direitos humanos. Ao mesmo tempo,
a ênfase conferida ao princípio de autodeterminação foi utilizada pelo consti-
tuinte em defesa da soberania nacional em face da desigualdade factual entre
Estados, em linha com princípios de matiz soberanista como independência
nacional e não intervenção.
589 Na emenda 00019 de Aluizio Be zerra na Comissão da Sob erania e dos Direitos e Gara ntias
do Homem e da Mulher, propunha-se inclui r parágra fo único ao então art . 20, nos seguintes
termos: “Em respeito ao pri ncípio da autodeterminação dos povos, da n ão intervenção em
assuntos internos e da i gualdade soberana dos Esta dos, o Brasil se oporá que organismos
regionais dos quai s faça parte utili zem a força contra qualquer de seus membros”. Haroldo
de Lima propôs a emenda 00 043 para retomar a proibiçã o da guerra de agre ssão e de
conquista. Ele sus tentava que “o não envolvimento em guerra de agre ssão ou de conquista,
bem como a não anexação de te rritórios pertencentes a out ros países, é uma garantia do
respeito à soberani a e à autodeterminação dos outros povos”.
590 Segundo o inci so VII do art. 27 do projeto submetido pela Comiss ão da Soberania e dos
Direitos e Garant ias do Homem e da Mulher, previa-se “ intercâmbio das conquist as
tecnológicas e do patr imônio cientíco e cultur al da humanidade, sem prejuí zo do direito
à reserva de mercado sempre que o cont role tecnológico de nações est rangeiras pos sa
implicar domina ção política e perigo para a autodet erminação nacional”.
591 As propostas de i ncluir dispositivo proibiti vo quanto ao estabeleci mento de relações
diplomáticas com “país es ou nações colonizad as ou ocupadas pela força” consist iam na
contraface lógic a das emendas voltadas a proibir o Brasil de ma nter relações com regimes
segregacionis tas.
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