Repúdio ao terrorismo e ao racismo

Páginas463-526
Capítulo XII
Repúdio ao
Terrorismo e ao Racismo
O
inciso VIII relativo ao princípio de repúdio1565 ao terrorismo e ao
racismo é outra inovação da Constituição de 1988. Sem analogia
nem mesmo na constituição da África do Sul, cuja experiência
motivou o constituinte brasileiro a repudiar o racismo, ou, em se tratando de
terrorismo, em países que padeceram ou seguem sendo vítimas de ataques ter-
roristas, a inscrição dessa norma na Constituição Federal é algo sem paralelo
em textos constitucionais de outros Estados. A melhor técnica legislativa,1566
que sugeriria a utilização de fórmulas já consagradas no direito internacional,
cedeu lugar ao humanismo do legislador: o terrorismo e o racismo são incom-
patíveis1567 com os valores consignados na ordem democrática inaugurada em
1988.1568 São contrários não só à índole nacional, mas também ao modelo de
organização interestatal propugnado pelo Brasil.
1565 Houaiss sugere, como si nônimos de repúdio: abomi nação, antipatia , asca, asco, avers ão,
desamor, desgosto, desprezo, d icu ldade, enjeitame nto, enjoo, enojo, entejo, estra nhamento,
execração, fast io, horror, incha, jeriza , malquerença, náusea , nojo, objeção, ódio, ojeri za,
pavor, quijila, quizila , quizília, rabidez, raiv a, rancor, rechaço, recusa, rejeição, relutação,
relutância, repe lência, repugnância, repu gno, repulso.
1566 Celso D. de Albuquerque Mello, s upra nota 3, p. 150.
1567 “Repudiamos na Cons tituição ao terrorismo (aqueles atos praticados pelos que se op õem
ao governo), mas não repudiamos o terror, isto é, os mesmos ato s quando praticados pelos
governos autoritários”. Celso D. de Albuquerque Mel lo, supra nota 3, pp. 151-152.
1568 A natureza repu lsiva desses cri mes é reforçada, em âmbito con stitucional, pelo i nciso
XLIII do ar t. 5º, que considera o racismo cr ime inaanç ável e imprescritível, sujeito à
pena de reclusão, e insus cetível de graça ou anist ia, por ele respondendo os mandantes, os
executores e os que, podendo ev itá-lo se omitirem.
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JOÃO ERNESTO CHRISTÓFOLO
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A redação do inciso VIII do art. 4º resultou da convergência das temáticas
de terrorismo e racismo na Constituinte.1569 O Projeto de Constituição (A)
continha dispositivo com redação que incluía o “racismo” ao lado do terro-
rismo como objetos de “repúdio” pelo constituinte. A partir daí, houve o des-
membramento do art. 4º em incisos especícos e o “repúdio ao terrorismo e ao
racismo” foi mantido entre os princípios que regem o Brasil em suas relações
internacionais.
Repúdio ao Terrorismo
Ao longo do século XX, indivíduos, grupos e entidades não estatais de
diversos matizes políticos, ideológicos, religiosos e étnicos recorreram, sob
alegações e motivações as mais variadas, a táticas violentas com o objetivo
de constranger o poder público.1570 Os exemplos são muitos, a despeito das
opiniões e juízos que se possam fazer sobre o caráter dessas ações.1571 Por mais
distintas, inadmissíveis e muitas vezes contraditórias que sejam as alegações
dos responsáveis por esses atos de violência, é possível extrair-lhes caracte-
rísticas comuns de práticas terroristas. Em primeiro lugar, são atos e ativida-
des violentos realizados por entidades não estatais contra a população civil e
não combatente. O terrorismo se caracteriza primordialmente, portanto, pela
violação de direitos fundamentais protegidos pela ordem jurídica internacio-
nal, em especial do direito internacional dos direitos humanos e do direito
internacional humanitário. Em segundo lugar, o juízo sobre a natureza dessas
ações é subjetivo.1572 O que uns entendem e denunciam como terrorismo, ou-
tros não, e vice-versa.1573 As diferentes percepções sobre o fenômeno do terro-
1569 A emenda 497 de Maurício Nas ser propunha a “condenação ao colonialismo sob tod as as
formas, à discr iminação racial e ideológ icas, ao terrorismo, à tortur a, ao armamentismo e
à guerra”.
1570 Cf. Daniel La zare, ‘We Are All Terrorists’, 29 Radical Society (200 2), 13.
1571 Em décadas ma is recentes, a intolerânc ia e o ódio mostrar am outra face: a v iolência do
extremismo rel igioso.
1572 Caso parad igmático foi a cara cterização d e movimentos que lutavam contr a o apartheid
como “terroristas”. Além do reg ime sul-afr icano, os EUA, sob Ronald Reaga n, também
incluíram o C ongresso Nacional A fricano (ANC), de Nelson Mand ela, na lista de
organizaçõe s terroristas, da qual s ó sairia em 2008.
1573 David Freestone, ‘e pri nciple of co-operation: terror ism’, in C. Warbrick & V. Lowe (eds.),
e United Nations and the Pr inciples of International Law, London/ New York, Routledge,
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REPÚDIO AO TERRORISMO E AO RACISMO
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rismo estão na raiz das divergências sobre a denição do conceito no direito
internacional público.1574 A tendência à subjetividade acentua riscos de instru-
mentalização do conceito segundo interesses alheios e muitas vezes contrários
a princípios de humanidade que legitimam o repúdio ao terrorismo.1575 Em
terceiro lugar, há uma desproporção de forças entre, de um lado, grupos não
estatais responsáveis por atos terroristas e, de outro, Governos e/ou sociedades
que, vitimadas pelos ataques, denunciam essas ações como sendo de natureza
terrorista.1576 Aí se expressa novamente o cerne da controvérsia vericada no
processo de codicação do terrorismo como crime internacional. Em especial
no tocante ao direto à autodeterminação dos povos, houve receio de que o
conceito de terrorismo fosse utilizado para reprimir e privar movimentos de
libertação nacional dos meios de força à sua disposição em face da opressão
e/ou da ocupação estrangeira. Mas mesmo agindo sob a inspiração de objeti-
vos legitimamente reconhecidos pelo direito internacional (autodeterminação
dos povos) indivíduos e organizações podem incorrer em atos e atividades
terroristas. Por m, ações terroristas orientam-se (declaradamente ou não)
pela intenção de seus perpetradores de disseminar o medo na população em
geral a m de constranger um Governo a determinada ação ou abstenção, ou
ainda de expor as debilidades e a incapacidade do poder público de coibir a
atuação de um grupo ou movimento, semeando sentimento de insegurança
generalizado na sociedade. Se no plano doméstico atos e atividades terroristas
vão de encontro a pressuposto fundamental do Estado de Direito (monopólio
do uso da força pela autoridade pública), no plano externo o terrorismo viola
valores fundamentais do direito internacional contemporâneo. É, pois, como
1994, 137-159, p. 138. Zeidan obser va que “one man’s terrorist is another’s freedom ghter”.
Sami Zeida n, ‘Agreeing to Disagree: Cu ltural Relat ivism and the Di culty of De ning
Terrorism in a Post-9/11 World’, 29 Hastings Intern ational & Comparative Law Re view
(2005-2006), 215, p. 227.
1574 Robert P. Barnidge Jr., ‘Terrorism: a rriving at an u nderstanding of a term’, in M. J. Glen non,
S. Sur (org.), Terrorisme et droit internation al – terrorism an d international l aw, Leiden/
Boston, Marti nus Nijho, 2008, p. 157.
1575 “It is not surprising t hat “terrorism” is sti ll not dened, be cause its very ma lleabilit y
serves multiple pol itical interest s through its va ried opportun istic applications - suc h as
deecting cr iticism from ocial governmenta l gures and onto extremist “ot hers,” and to
indicate par ticular pract ices as outside the scope of p olitical negotiat ion and contestation”.
Sami Zeida n, supra nota 1773, p. 218.
1576 O terrorismo seri a “a arma do fraco”. Celso D. de Albuquerque Mello, supra nota 3, p. 151.
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