Prevalência dos direitos humanos

Páginas167-226
Capítulo VI
Prevalência dos
Direitos Humanos
Uma das principais inovações em matéria de relações internacio-
nais em nosso constitucionalismo,360 o princípio de prevalência
dos direitos humanos (inciso II do art. 4º) está imbricado361 em
um dos eixos fundamentais sobre os quais repousa a ordem política,362 social
e jurídica inaugurada pela Constituição Federal de 1988.363 O objetivo de criar
uma sociedade mais justa e desenvolvida, com oportunidades iguais para todos
a despeito de raça, cor, religião, idade, gênero e condição social, fundamenta-se
na primazia dos direitos humanos. Analisado individualmente, o princípio da
prevalência dos direitos humanos, como norma de caráter aberto,364 associa-se
materialmente ao princípio de promoção e proteção dos direitos humanos no
direito internacional contemporâneo.
360 Pedro Dallar i, supra nota 2, p. 160.
361 “No art. 4º, a cla ra nota identicadora d a passagem do regime autor itário para o Est ado
democrático de di reito, é o princípio que assevera a prevalência do s direitos humanos (art.
4º - II)”. Celso Lafer, supra not a 1, p. 113. Esse fenômeno não é exclusivo do Brasil, sendo
comum em outras const ituições preparad as no ocaso de regi mes autoritários, como na
Grécia (1975), Espanha (1978) e Portugal (1976).
362 Luiz Felipe La mpreia, ‘Os Direitos Humanos e a In serção Internacional do Br asil’, in
Boletim da Socie dade Brasileira de D ireito Internacional , Ano LI (Jan./De z. 1998), Nos
113/118, Brasília/R io de Janeiro, SBDI/Ed. da UnB, 1998, p. 46.
363 Os muitos dispositivos c onstitucionais sobre d ireitos individua is e coletivos revelam o se ntido
axiológico dos d ireitos humanos enquanto elemento de nidor da identidade naciona l sob
a égide da Nova República . Citem-se, por exemplo, o funda mento da dignidade d a pessoa
humana inscr ito no art. 1o, inciso III, o extenso rol de d ireitos e garantias fund amentais do
art. 5º, que têm aplicaç ão imediata, e os direitos sociai s do art. 6º. Flávia Piovesan, Direitos
Humanos e Direito Constitucional Internacional, 4a. ed., S ão Paulo, Max Limonad, 200 0.
364 “A ‘prevalência dos direitos humanos’ é outro pr incípio elaborado de um modo ex tremamente
impreciso. (...) Parece-nos que se deveria ter coloc ado apenas no texto constitucional ‘ defesa
dos direitos humanos’”. Celso D. de A lbuquerque Mello, supra nota 3, pp. 134-135.
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JOÃO ERNESTO CHRISTÓFOLO
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Prevalência dos Direitos Humanos
na Assembléia Nacional Constituinte
A temática dos direitos humanos fez-se presente como vis directiva da ação
externa do Brasil ao longo de toda a Assembléia Constituinte.365 No art. 21 do
primeiro anteprojeto submetido à Subcomissão de Nacionalidade, Soberania
e Relações Internacionais, lia-se que o Brasil “favorecerá a obra de codicação
do direito internacional, os movimentos de promoção dos direitos humanos e a
instauração de uma ordem econômica justa e equitativa”.366 Posteriormente,
no projeto submetido pela Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias
do Homem e da Mulher, esse princípio surgiria individualmente já em for-
mulação muito próxima da atual (“intocabilidade dos direitos humanos”), até
consagrar-se, a partir do Projeto de Constituição (A), como “prevalência dos
direitos humanos”. Houve, assim, evolução terminológica a partir de “promo-
ção dos direitos humanos” para, sucessivamente, “intocabilidade” e, entre o
Primeiro e o Segundo Substitutivo na Comissão de Sistematização, a fórmula
“prevalência dos direitos humanos”. Embora essas alterações tenham ocorri-
do em meio à tendência de reduzir o texto constitucional,367 a evolução nas
expressões utilizadas pelo constituinte teve implicações semânticas ao signi-
cado e o sentido do dispositivo. A idéia de “promoção” advém da linguagem
consagrada no direito internacional dos direitos humanos a partir da Carta das
Nações Unidas. A noção de “intocabilidade” tem sentido não regressivo: evitar
a diminuição ou o enfraquecimento do universo de proteção dos direitos hu-
manos salvaguardado pela ordem internacional. Já “prevalência” é mais amplo,
na medida em que pressupõe a primazia dos direitos humanos no contexto
de uma realidade internacional na qual exercem inuência recíproca fatores e
interesses diversos (econômicos, comerciais, políticos, ideológicos e culturais).
365 A primeira referência a u m princípio de política ex terior na área dos direito s humanos
partiu do então Sec retário Gera l do Itamaraty, Paulo Tarso Flecha d e Lima. “Creio que
alguma cois a deveria ser feita em matéria de pri ncípios que se relacionasse com a delidade
e observância à s normas dos direitos humanos”. Supra nota 38 6, p. 13.
366 “O mundo é uma relação entre os Est ados, entre os povos. De que ma neira se faz esse
ordenamento jurídico entre os p ovos? A luta pela democracia, pelo s direitos humanos,
em qualquer lugar onde eles se enc ontram. Esse é noss o princípio basilar de ntro da
Constituição br asileira”. João Herrmann Neto, supra not a 426.
367 Privileg iou-se linguagem suci nta em vez de referências longas. A própria t emática de
relações internaciona is, inicialmente disposta em v ários disposit ivos nos anteprojetos da
Subcomissão e da Com issão de Soberan ia, foi condensada em um ún ico artigo enumera ndo
princípios de forma geral e a bstrata.
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A despeito dessas mudanças,368 a inclusão do inciso II no art. 4º alçou a promo-
ção e a proteção dos direitos humanos à condição de objetivo permanente do
Brasil nas relações internacionais.
Na Constituinte, houve também várias tentativas de criar regras que vin-
culassem a manutenção de relações diplomáticas com governos estrangeiros
com a ocorrência de violações de direitos humanos.369 Emendas dessa natureza
buscavam proibir o Brasil de manter relações diplomáticas com regimes auto-
ritários, em especial regimes segregacionistas e colonialistas.370 Essas propostas
foram rejeitadas sob o argumento de que o rompimento de relações com esses
Estados levaria ao isolamento e ao potencial recrudescimento dessas políticas,
em prejuízo das próprias vítimas.371 Prevalecia, dessa forma, a preferência do
constituinte pelo diálogo e o engajamento construtivo, mas sem omissão, na
busca de soluções para casos de violações em terceiros países.
368 Na Comissão de Sistemat ização, Marco Mac iel propôs a emenda 29941, que, tendo
como “nalidade a ot imização conce itual da matéria”, propunha sub stituir a expressão
“intocabil idade” por “respeito aos Direitos Humanos”, como lingu agem mais “tradicional
em textos jurídico s, mesmo internacionai s, como o Pacto de São José da Cos ta Rica, da
OEA, e a Declaraç ão dos Direitos do Homem, da ONU”. A emenda foi rejeitada porque o
relator evitava reabri r o texto.
369 A emenda 00087 de Am aury Muller (PDT/RS) esta belecia que “o Brasil não ma nterá relações
diplomáticas, comercia is e cultura is com países onde preva leçam regi mes autoritários e
cujos Poderes Legislat ivos não estejam funcionando normal mente”. Em sua justicativa ,
aduzia que “o dever da solida riedade internaciona l (...) está a exigir atitude c oerente do
governo brasileiro. (...) Essa atitude co erente exige a ruptura do rel acionamento normal,
que é deferido a nações sobera nas e democrática s, mas jamais a ceito pela consciência
nacional quando se t ratam de governos despóticos, v iolentadores de direitos”.
370 Nel son Wedeckin propunha a inc lusão da regra de que “com os Estado s onde,
comprovadamente, sejam de srespeitados os direitos hu manos, com ofensa ao princ ípio
da não-discr iminação racial, ou que hajam sido condenado s pela Assembleia das Naçõ es
Unidas, por essa prát ica, o Brasil não manterá relaçõe s diplomáticas”.
371 “O nor mal é o Brasil manter relaçõe s com todos os povos, inclusive como porta de entr ada
de nosso princípio de coex istência pacíca e promoção dos direitos huma nos, onde deles
houver falta”. João Herrmann Neto, Reda ção Final do Anteprojeto, Pare cer do Relator sobre
as Emendas apresentada s ao anteprojeto, Subcomissão da Nacionalidade , da Soberania e
das Relações Inter nacionais, Comissão d a Soberania e dos Direitos e Ga rantias do Homem
e da Mulher, Assembléia Naciona l Constituinte , 22/5/1987. A mesma posição prevalec eu
na Comissão de Sistem atização. Seg undo o relator Bernardo Ca bral: “não cremos ser
conveniente impedir o Bra sil de manter relações diplomática s com países que pratiquem o
preconceito de raça e o colonia lismo, principalmente pela ajuda que , em decorrência desse
relacionamento possa ser oferec ida a quem sofrer a discrimi nação”.
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