Não intervenção

Páginas267-338
Capítulo VIII
Não Intervenção
O
princípio da não intervenção é um dos pilares sobre os quais
se erigiu a ordem jurídica internacional contemporânea. Essa
norma regula, de forma proibitiva, o relacionamento interes-
tatal por meio do reconhecimento recíproco de um universo de relações no
interior de um Estado em que é vedada a interferência de terceiros países. O
princípio de não intervenção tem duas dimensões.721 A objetiva consiste no
dever de abstenção722 em relação a esse universo normativo que corresponde,
materialmente, aos elementos constitutivos do Estado (indivíduos, território
e soberania). A dimensão subjetiva consiste no direito de um Estado à esco-
lha sobre a forma de Governo e o modelo de desenvolvimento de maneira
desimpedida de forças externas. Nessa dimensão, o princípio de não inter-
venção se associa aos princípios de igualdade, independência e autodetermi-
nação dos povos, como proteção ao exercício da autonomia pelos Estados no
plano internacional.
Não intervenção na Assembléia Nacional Constituinte
A inclusão do princípio de não-intervenção no art. 4o alinha-se com a
tradição do constitucionalismo brasileiro de vedar a guerra de conquista.
O art. 88 da constituição republicana de 1891 dispunha sobre a proibição
da guerra de conquista, “direta ou indiretamente, por si ou em aliança com
721 Vaughan Lowe, ´e principle of non-inter vention: use of force´, in Colin Warbrick and
Vaughan Lowe, e United Natio ns and the Princi ples of Internation al Law, Essays in
Memory of Michael Ak ehurst, London/New York, Routledge, 1994, p. 68.
722 Pedro Dallar i, supra nota 2, p. 165.
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JOÃO ERNESTO CHRISTÓFOLO
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outra nação”. A mesma regra proibitiva foi reproduzida, em formulações dis-
tintas, nas Constituições de 1934 (art. 4º),723 1946 (art. 4º)724 e 1967 (art. 7º,
parágrafo único725).
Mas foi somente na Constituição de 1988 que esse valor arraigado histori-
camente na identidade internacional do Brasil foi positivado na ordem jurídica
doméstica sob a norma de não intervenção consagrada no direito internacio-
nal público. Esse princípio foi utilizado pelo constituinte como direção à ação
do Brasil tanto como proibição de engajamento em políticas intervencionistas,
quanto como dever de zelar para que ações de outros Estados não constituam
ingerência indevida em nossa soberania.726 A emenda proposta com o obje-
tivo de incluir o princípio de não intervenção associava-se a essa percepção
prevalecente entre os legisladores,727 tal como reetido no repúdio de vários
723 Art 4º - O Brasil s ó declarar á guerra se não coube r ou malograr-se o rec urso do arbitr amento;
e não se empenhará ja mais em guerra de conquista , direta ou indiretamente, por si ou em
aliança com out ra nação.
724 Art 4º - O Brasil s ó recorrerá à guerr a, se não couber ou se malog rar o recurs o ao
arbitramento ou aos meios pací cos de solução do conito, re gulados por órgão
internacional de seg urança, de que part icipe; e em caso nenhum se empenhará e m guerra
de conquista, di reta ou indiretamente, por si ou em al iança com outro Estado.
725 Art 7º - Os conito s internacionais dever ão ser resolvidos por negoc iações direta s,
arbitragem e outros meios pac ícos, com a cooperação dos organismos i nternacionais de
que o Brasil par ticipe. Parágrafo ún ico - É vedada a guerra de conquista .
726 A participaçã o do Brasil na intervenção na República Domi nicana sob o manto da OEA,
em 1965, foi mencionada por vários const ituintes como caso paradig mático de obrigação
de não fazer. Para Alu izio Bezerra, “o Brasil, naquela o casião, serviu de braço arma do aos
interesses nort e-americanos”. Supra nota 384 , p. 6. Vilson Souza armou que “a Ditadur a
chegou a invadir, com uma força mi litar, a República Domi nicana, em 1965, pa ra,
juntamente com tropas nor te-americanas , impedir a reintegr ação do presidente eleito, Juan
Bosch, acusado de es querdista. É , portanto, preciso complet ar as formulaçõe s pacicas
Constituição, p ara que não permaneçam g uras de retórica e de efeito acadêmico”.
727 Emenda 00019 ao Anteprojeto do Relator da Sub comissão: “Parágrafo únic o. Em respeito
ao princípio da autodeterm inação dos povos, da não inter venção em assuntos internos e da
igualdade so berana dos Estados, o Brasi l se oporá que organismos regionais do s quais faça
parte util izem a força contra qualquer de seus membros”. A justicat iva dada à proposta
foi a seguinte: “esta (ONU), e somente a est a organizaç ão mundial, e depois d e ouvido o
seu Conselho de Seg urança, s erá licito utili zar tropas dep ois de ouvido o seu Consel ho
de Seguranç a, será licito uti lizar t ropas multinaciona is para gara ntir a paz e dis suadir
ameaças de uti lização da força”. Nesse mesmo sentido, já na Comissã o de Sistematização,
Jamil Haddad propôs a eme nda aditiva 09201 ao projeto 1 para inclui r, entre os princípios
fundamenta is, o segui nte artigo: “O Brasi l não participa rá de forças internac ionais de
caráter inter vencionista”. Em sua justicat iva, aduziu que “a Const ituição deve deix ar
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constituintes a intervenções unilaterais em países soberanos à margem da
Carta das Nações Unidas.728
Na Assembléia Constituinte, as deliberações sobre o princípio de não in-
tervenção nos assuntos domésticos reetiam a tensão entre as dimensões so-
beranista e universalista da política externa brasileira. Essa norma representa-
va o sentimento de repulsa, bastante presente na redemocratização, quanto à
ingerência de potências estrangeiras em nosso processo político, econômico e
social, em contrariedade não só ao princípio de não intervenção, mas também
ao princípio de autodeterminação dos povos. Para o constituinte, a aplicabili-
dade dessa norma deveria aplicar-se não só à diplomacia brasileira no plano
externo, mas igualmente a relações públicas e privadas sob a jurisdição bra-
sileira, isto é, enquanto norma proibitiva em relação à eventual interferência
indevida de terceiros Estados sobre decisões soberanas.
O Princípio de Não intervenção na
Ordem Jurídica Internacional
A codicação do princípio de não intervenção acompanhou a formação
de uma ordem jurídica internacional de cooperação entre os Estados.729 Na
gênese desse processo residia o interesse de assegurar respeito mútuo à auto-
nomia de cada Estado por meio da regulação e da limitação recíproca do uso
da força armada e de outras formas de pressão e coerção que atentam contra
a soberania estatal. No direito internacional moderno, a origem do conceito
de não intervenção associa-se ao reconhecimento de um dever de abstenção
claro que o Brasil não p articipar á de forças intervencioni stas de caráter i nternacional
(...) O dispositivo proposto visa a impe dir que situaçõe s políticas excep cionais ensejam
aventuras que tanto di screpam do nosso passad o histórico. Que a intervenção n a República
Dominicana ja mais se repita”. Em seu parecer, o relator julgou que a emend a estava
prejudicada, porquanto já s e previa, entre os pri ncípios de relações internac ionais, “a
autodeterminaçã o, não ingerência e solução pacíca dos con itos”.
728 Essa dinâm ica também se observ ava em propostas para proibir a par ticipação do Brasil em
blocos milita res.
729 “’Non-intervention’ is laid down a s a constitutional principle of the Char ter of the world
community ”. Felix Ermacora, supra nota 635, p. 143. Cf. Celso D. de Albuquerque Mello,
supra nota 3, p. 139.
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