Solução pacífica dos conflitos
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Capítulo XI
Solução Pacífica
dos Conflitos
O
princípio de solução pacíca de controvérsias é a contraface ló-
gico-normativa da proibição de os Estados recorrerem à guerra
como meio legítimo de garantir direitos e reparar ofensas no pla-
no internacional. Tal como em âmbito doméstico, o surgimento de litígios é
dado inarredável das relações interestatais.1343 Mas se no plano interno a cons-
tituição de um Estado pressupõe que conitos intersubjetivos sejam equacio-
nados pela via exclusivamente pacíca, no desaguadouro natural do Poder
Judiciário, no plano externo inexiste autoridade que concentre o uso da força
e detenha competência jurisdicional aplicável a todos os atores do sistema em
condições de igualdade. O recurso e a eventual submissão a meios de solução
de controvérsias dependem da vontade soberana dos Estados. É diante dessa
realidade que se explica o equilíbrio buscado historicamente pelo Brasil entre
o recurso às vias de solução pacíca para a defesa dos interesses nacionais e a
preservação da autonomia em um sistema internacional carente de mecanis-
mos supranacionais de escopos verdadeiramente universal e igualitário.
Solução Pacíca de Conitos na
Assembléia Nacional Constituinte
O compromisso do Brasil com a solução pacíca de controvérsias surge já
no preâmbulo da Constituição Federal1344 como algo associado à instituição de
1343 Hildebrando Ac cioly, supra nota 456, vol. III, p. 12.
1344 “Nós, representantes do povo bra sileiro, reunidos em A ssembléia Nacional Const ituinte
para instit uir um Estado Demo crático, desti nado a assegur ar o exercício dos direitos
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JOÃO ERNESTO CHRISTÓFOLO
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um Estado Democrático de Direito. Compreendido como a contraface lógica
da proibição do uso da força, o princípio de solução pacíca de conitos con-
siste em dimensão indissociável do propósito mais amplo e subjacente à ordem
internacional contemporânea de manter a paz e a segurança internacionais.1345
Esse elemento dene não só a política externa, mas também a ordem social
propugnada pelo constituinte: a aversão ao uso da força à margem do Direito.
Em 1988, a solução pacíca de conitos já era princípio tradicional do
constitucionalismo brasileiro.1346 Embora com redações diferentes, essa norma
associa-se à positivação da renúncia à guerra de conquista em constituições
anteriores. Na primeira lei magna da República, de 1891, o princípio de so-
lução pacíca de controvérsias era deduzido do texto constitucional, que, por
um lado, proibia a guerra de conquista (art. 88)1347 e, por outro, circunscrevia
a faculdade outorgada ao Congresso de autorizar o Governo a declarar a guer-
ra à hipótese de não “lograr ou mallograr-se o recurso do arbitramento” (art.
34(11)). A Constituição de 1934 manteve a mesma sistemática (arts. 4º e 40 (b))
ao sujeitar a declaração de guerra à impossibilidade ou malogro de solução do
diferendo por arbitramento.1348 A Carta de 1946 seguiu essa lógica, porém sob
condição mais ampla: o uso da força só seria admitido no caso de insucesso
de meios pacícos de solução pacíca.1349 A Constituição de 1967 reproduziu
a associação direta entre ambas as normas, só que de forma ainda mais explí-
cita. O art. 7º propugnava, por um lado, que os conitos internacionais fos-
sem solucionados por negociações diretas, arbitragem e outros meios pacícos,
com a cooperação de organismos internacionais; por outro, vedava a guerra de
sociais e indi viduais, a liberdade , a segurança, o be m-estar, o desenvolvimento, a igu aldade
e a justiça como valores s upremos de uma sociedade frate rna, pluralist a e sem preconceitos,
fundada na ha rmonia social e compromet ida, na ordem interna e inter nacional, com a
solução pacíca d as controvérsias”, preâmbu lo da Constituição.
1345 I. Brownlie, su pra nota 133, p. 671.
1346 Celso D. de Albuquerque Mello, su pra nota 3, p. 148.
1347 Art. 88 - Os Es tados Unidos do Brasil, em ca so algum, s e empenharão em guer ra de
conquista, di reta ou indiretamente, por si ou em al iança com outra nação.
1348 Art. 4º - O Bra sil só declara rá guerra se nã o couber ou malogra r-se o recurso do arbit ramento;
e não se empenhará ja mais em guerra de conquista, d ireta ou indiretamente, por si ou em
aliança com out ra nação.
1349 Art. 4º - O Bra sil só recorrerá à gue rra, se não couber ou se ma lograr o recur so ao
arbitramento ou aos meios pací cos de solução do con ito, regulados por órgão i nternacional
de seguranç a, de que participe; e em caso nenhu m se empenhará em guerra de conquist a,
direta ou indi retamente, por si ou em aliança com out ro Estado.
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SOLUÇÃO PACÍFICA DOS CONFLITOS
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conquista.1350 Em que pese à ambigüidade no caput desse artigo,1351 a referência
ao envolvimento de organismos internacionais não tinha sentido restritivo, mas
inclusivo: indicar novas vias de solução pacíca de controvérsias oferecidas por
organismos internacionais dos quais o Brasil era parte (Nações Unidas e OEA).
Em linha com esses antecedentes, o princípio de solução pacíca de con-
trovérsias fez-se presente em todo o processo deliberativo da Assembléia
Constituinte.1352 A necessidade de manter esse princípio entre os dispositivos
do art. 4o foi opinião consensual entre os constituintes. Isso talvez explique
as raras emendas especícas sobre o tema, que foram apresentadas, em sua
quase totalidade, já na Comissão de Sistematização. A mais importante des-
sas propostas dizia respeito à conveniência de adotar o termo “controvérsias”
ao invés de “conitos”, em conformidade com a norma correspondente do
direito internacional contemporâneo. A modicação tinha a nalidade de
promover “a otimização conceitual da matéria”, na medida em que seria “de
todo mais correta, pois as controvérsias, anteriores mesmo aos conitos, já
devem ser compostas pelos meios juridicamente previstos, no intuito de, in-
clusive, evitá-los”.1353 A emenda, porém, foi rejeitada não por razões substan-
tivas, mas por coerência procedimental: o relator queria evitar a reabertura
do debate sobre o texto.1354
O tema também surgiu na discussão sobre a conveniência de retomar
a norma proibitiva da guerra de conquista, nos moldes de constituições
1350 Esse disposit ivo enumerava meios de solução pacíca cons agrados em instrumentos c omo
a Carta da ON U, com ênfase naqueles privi legiados na prática d iplomática brasileir a
(negociações di retas e arbitragem).
1351 Celso Albuquerque Mel lo identica um problema de red ação, na medida em que ess e
dispositivo enseja i nterpretação rest ritiva, no sentido de que “ess a cooperação dá a
impressão de que o Brasi l não pode resolver o problema sem a intervenção deles”. Celso de
Albuquerque Mello, supra nota 384, p. 3.
1352 Embora com versões di stintas, essa norma este ve em todas as propostas nas diversa s fases
da Constitui nte.
1353 Emenda 29941 proposta por Ma rco Maciel. Com a mesma nalidade, José Mou ra propôs
a emenda 00185 na Comissão de Sistemat ização, sob a justicati va de que “a terminologia
correta é a proposta, cont rovérsias, e não conitos como na fórmula objeta da”.
1354 Em seu parecer, dizia qu e “o fato de termos indicado à aprovação emendas, ao di spositivo
em pauta, com teor diferente ao da prop osta, faz com que, por co erência, sejamos pela
rejeição desta emend a”.
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