O conceito de princípios constitucionais de relações internacionais

Páginas7-58
Capítulo I
O Conceito de Princípios
Constitucionais de
Relações Internacionais
O
art. 4º da Constituição Federal representa a superação, ao menos
em relação a esse universo normativo especíco, da dicotomia
monista e dualista entre as ordens jurídicas doméstica e interna-
cional. No lugar da prevalência de um plano normativo sobre o outro, ambos
os ordenamentos são coincidentes em relação a esse universo materialmen-
te denido pelos princípios constitucionais de relações internacionais. A po-
sitivação dessa norma com status constitucional11 teve o condão de abrir o
direito interno ao direito internacional por meio da recepção de princípios,
subprincípios e regras desenvolvidos historicamente no direito das gentes. Ao
formalismo constitucional dessas normas agregou-se materialidade do direito
internacional. Essa premissa é retirada da redação do art. 4º: os princípios em
apreço se inscrevem nos Princípios Fundamentais do Título I da Constituição,
mas se dirigem à regulação de condutas do Brasil em suas relações internacio-
nais, isto é, em sua ação como sujeito de direito internacional público.
11 “O art. 4º da C onstituição de 1988 é ind icativo desta abert ura, pois os princípios nele
positivados estão próx imos dos que basicamente regem, de ac ordo com o Direito
Internacional Públ ico, ex vi do artigo 2o d a Carta da ONU, a comunidade internaciona l.
São muito semelhantes ao s codicados, na épo ca da coexistência p acíca da guerra-f ria,
na Declaração Rel ativa aos Princípios do Direito I nternacional referentes às relaçõ es de
amizade e coop eração entre os Estados aprovada pela As sembléia Geral em 24 de outubro
de 1970, na celebração dos 25 anos da C arta da ONU. O art . 4o aponta, assim, pa ra a
complementaridade entre o Di reito Internacional Público e o D ireito Constitucional e
indica a irrad iação de conceitos elaborados no âmbito do Direito da s Gentes no plano do
Direito Público Interno”. Celso L afer, supra nota 1, p. 113.
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JOÃO ERNESTO CHRISTÓFOLO
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Em termos doutrinários, a distinção ora proposta entre forma e materia-
lidade obedece à lógica de um sistema jurídico tendo a Constituição como
ápice. Em sentido formal, os planos de existência e de validade dos princípios
de relações internacionais decorrem da autoridade conferida ao constituinte
para a promulgação da lei fundamental escrita com regras hierarquicamente
superiores e das quais derivam a validade das demais normas do ordenamento.
Em sentido material, a Constituição representa o conjunto de normas jurídi-
cas que regulam os órgãos do Estado quanto às suas composições, competên-
cias, relações e funcionamento.12 A dimensão formal impõe, assim, determinar
qual é a função especíca dos princípios do art. 4º como normas de hierarquia
constitucional. Já a dimensão material revela a força da Constituição no pós-
-positivismo, em que os princípios desempenham papel central na realização
dos valores consagrados no texto máximo do ordenamento.13
A tese de que os princípios do art. 4o se desdobram nessas duas dimen-
sões está amparada, igualmente, no entendimento de que a materialidade da
constituição é dada, de forma genérica, pelo conjunto de normas e ns estabe-
lecidos pelo legislador constituinte,14 ao passo que o caráter formal é resultado
da inserção positiva dessas normas na lei fundamental, a despeito da área do
direito relativa à respectiva matéria regulada por um determinado dispositivo
constitucional.15 Isso se observa não só no direito internacional, mas também
no direito administrativo, processual, econômico e tributário, entre outros.16
O contrário é igualmente verdadeiro: há normas de conteúdo constitucional
fora do diploma fundamental, a exemplo de princípios implícitos, como o
princípio da proporcionalidade.17 O fato de que princípios constitucionais de
12 Celso D. de Albuquerque Mello, su pra nota 3, p. 8.
13 Bonavides sustenta o advento d a teoria material da C onstituição, cujo ser ia o “Estado
principialist a”. Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, São Paulo, Ma lheiros,
1994, 5a ed., p. 17.
14 “A constituição material d esigna as normas const itucionais escrita s que regulam a
estrutur a do Estado, a organização de seu s órgãos e os direitos fundamentai s do homem”.
José Afonso da Silva , supra nota 4, p. 38.
15 “Todas as normas inser tas nesse documento-ato do pod er constituinte são const itucionais,
pouco importando s eu conteúdo”. Idem, p. 39.
16 Ibidem, pp. 42-43.
17 O conceito de constitu ição formal (legislad a, escrita e rígid a) “não exclui o reconhecimento
de normas constituc ionais materiais, dent ro como fora do documento supremo”. José
Afonso da Silva, s upra nota 4, p. 40.
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O CONCEITO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
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relações internacionais sejam formalmente constitucionais tampouco signica
que pertençam ao universo material do direito constitucional. Esses princípios
mantêm sua materialidade de direito internacional não obstante sua natureza
formalmente constitucional.18
Noção de Princípio nas Ciências Jurídicas19
A noção de princípio, comum às Ciências Humanas em geral, relaciona-
-se à sua etimologia. Oriundo do latim principium, começo e causa primária,
m almejado e proposição fundamental, o conceito de princípio corresponde,
no Direito, a um conteúdo polissêmico que revela parâmetros fundamentais
da ordem jurídica.20 Tal amplitude semântica traduz-se em noções nem sem-
pre coincidentes. O termo é utilizado indistintamente para referir-se a tipos
especícos de normas jurídicas (princípios constitucionais, por exemplo), a
normas válidas a despeito de um ordenamento positivo (princípios gerais do
direito) ou ainda à própria noção de fundamento e ápice da ordem jurídica
(ratio iuris e substrato axiológico).21
Hodiernamente, é comum apresentar o conceito de princípio com base
na comparação com a noção de regras, ambas espécies do gênero norma nas
Ciências Jurídicas.22 Grosso modo, essa distinção foi desenvolvida em duas
18 Essa dist inção é abstrata, pois terão a mesma ju ridicidade das demais norma s inscritas na
Constitu ição.
19 Não é aqui o objetivo esgota r o debate acadêmico sobre o conceito de princípios.
20 Carmem Lúcia Antu nes Rocha, Princípios Constitucionais da Administração Pública, B elo
Horizonte, Del Rey, 1994, p. 21. Cf. também Cels o Antônio Bandeira de Mello, C urso de
Direito Administrativo, São Paulo, Malhe iros, 1994, p. 450. Na doutrina internaciona lista,
Cançado Trindade leciona que “nor ca n one study the foundations of International L aw-
making abs traction of its basic pri nciples, which form the subst ratum of the legal order
itself. It is indeed t he principles of International Law wh ich, permeating the corpus juri s of
the discipli ne, render it a truly normative system”. A. A. Canç ado Trindade, International
Law for Humankind: Towards a New Jus Gentium,  e Hague Academy of Internationa l
Law Monographs, Mar tinus Nijho, 2010, pp. 85 e 86.
21 Cf. Genaro Car rió, Princípios Jurí dicos y Positivismo Jurídi co, Buenos Aires, Abeledo-
Perrot, 1970, pp. 34-38.
22 Eros Roberto Grau, A Ordem E conômica na Constituição de 1988 (Inter pretação e Crítica),
São Paulo, RT, 1990, p. 76. Cf. também Paulo Bonavides , supra nota 13, p. 259; G.F. Mendes,
I.M. Coelho e P.G.G. Branco, Curso de Direito Constitucional, São Pau lo, Ed. Saraiva, 5a
ed., 2010, p. 97.
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