Direito ao esquecimento e o caso richthofen: qual deve ser o futuro do passado?

AutorJúlia Costa de Oliveira e Roberta Leite
Páginas231-261
DIREITO AO ESQUECIMENTO
E O CASO RICHTHOFEN:
QUAL DEVE SER O FUTURO DO PASSADO?
Júlia Costa de Oliveira
Mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada.
Roberta Leite
Mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada.
O que está escrito em mim
Comigo cará guardado, se lhe dá prazer.
A vida segue sempre em frente, o que se há de fazer.
Só peço a você um favor, se puder:
Não me esqueça num canto qualquer.”
Toquinho
1. INTRODUÇÃO
As profundas transformações sociais decorrentes dos avanços tecnológicos e a
consequente ressignif‌icação de institutos tradicionais como a privacidade costumam
render muitas ref‌lexões nos âmbitos sociológico e f‌ilosóf‌ico. Além de se dedicarem a
desvendar o que provoca fenômenos como o da “liquefação”1 da sociedade, os f‌iló-
sofos e sociólogos se preocupam em entender os novos padrões de comportamento
e antever sua inf‌luência no futuro.
Essas questões também chegam à esfera jurídica, que precisa se adaptar e, ao
mesmo tempo, conformar os novos hábitos ao ordenamento vigente. De um lado, há
a necessidade de adaptação, uma vez que as novas tecnologias criam, muitas vezes,
situações inéditas, até então desconsideradas pelo Direito e que passam a demandar
tutela jurídica. Por outro, torna-se igualmente necessário assegurar que as inovações
não criem uma nova ordem legal, e sim se adequem àquela existente: embora seja um
espaço de liberdade, a internet não é e nem pode ser um universo sem lei2.
1. Atribui-se a Zygmunt Bauman a noção de modernidade ou sociedade líquida. A metáfora da liquidez deve-se
ao fato de que, para o sociólogo, vive-se em tempos marcados pela vulnerabilidade e f‌luidez. (BAUMAN,
Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001).
2. V. posicionamento do Min. Herman Benjamin no REsp. 1.117.633/RO, 2ª T., Rel. Min. Herman Benjamin,
julg. 09/03/2010.
JÚLIA COSTA DE OLIVEIRA E ROBERTA LEITE
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É interessante notar que a liquidez que inunda o mundo pós-moderno acaba
por tornar alguns valores, como a vida íntima, surpreendentemente f‌luidos e outros,
como a liberdade de expressão, extremamente rígidos. Fato é que, no decorrer da
história, a sociedade brasileira, assim como tantas outras ao redor do mundo, padeceu
dos males paradoxais de insuf‌iciências e excessos. Por cerca de 20 anos, viveu-se sob
o regime opressivo e autoritário da ditadura militar, cujas ferramentas de controle
social incluíam o uso da força e a restrição à livre circulação da informação. Já na
modernidade líquida, vive-se a ditadura da superexposição, em que o controle social
é exercido de forma sutil, pela (falsa) sensação de liberdade irrestrita e enxurrada
de informações.
Para (sobre)viver, há quem adote um comportamento conforme e aqueles que,
contrariamente, optam pelo caminho da resistência. Ainda que pouco (e cada vez
menos) usual, existem pessoas que se opõem à espetacularização da vida nas redes
e que buscam uma rotina off-line, não com o intuito de se calar, mas apenas de não
publicizar suas opiniões e experiências. Não basta, porém, adotar uma postura reser-
vada e esperar que as mídias e as massas afastem de mim esses gadgets. A exposição
pode não ser uma escolha, e sim uma imposição – por vezes até legítima – em nome
da proteção de valores e interesses que se sobrepõem, no caso concreto, aos direitos
à vida íntima, à imagem e à honra.
Exemplo dessa exposição compulsória é a cobertura midiática de crimes que,
no bordão jornalista, chocam o país. Nessas hipóteses, as reportagens costumam ir
além da reprodução do ocorrido, promovendo um levantamento de particularidades
da vida dos envolvidos e a divulgação massiva de informações sobre eles, ainda que
objetivamente irrelevantes para o crime em questão.
Embora a repercussão desse tipo de evento não seja novidade, as novas mídias
possibilitam que sejam obtidos ainda mais detalhes sobre a vítima, o acusado e aqueles
que estão a sua volta, além de contribuírem para que as informações referentes ao fato
continuem facilmente acessíveis a qualquer momento. Dessa forma, mesmo com o
transcurso do tempo, ainda que o acusado seja condenado e cumpra integralmente
a sua pena – ou seja absolvido – ele, e a própria vítima, dif‌icilmente serão esqueci-
dos. Questiona-se, porém, se o esquecimento deveria ser uma possibilidade nessas
circunstâncias, especialmente considerando o princípio da reabilitação adotado pelo
direito penal3.
3. Um dos precedentes de maior destaque é o caso Lebach, julgado pelo Tribunal Constitucional Alemão. A
ação, movida por um dos indivíduos que fora condenado e preso por participação no homicídio de quatro
soldados e que estava prestes a ser liberado, pretendia impedir a veiculação de um documentário que nar-
rava o crime e citava, inclusive, o nome do autor da ação. O tribunal determinou que o programa não fosse
exibido sob a alegação de que, no caso concreto, a tutela dos direitos da personalidade sobrepujava a liber-
dade de comunicação. Entendeu-se que, de um lado, a veiculação do documentário poderia comprometer
a ressocialização do autor e que, por outro, não haveria um interesse público expressivo no fato vis-à-vis o
tempo transcorrido desde a data do crime.

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