Responsabilidade civil solidária entre provedores e autores de conteúdo ofensivo à luz do marco civil: critérios objetivos na perspectiva civil constitucional

AutorJoão Quinelato de Queiroz
Páginas303-336
RESPONSABILIDADE CIVIL SOLIDÁRIA ENTRE
PROVEDORES E AUTORES DE CONTEÚDO
OFENSIVO À LUZ DO MARCO CIVIL:
CRITÉRIOS OBJETIVOS NA PERSPECTIVA
CIVIL CONSTITUCIONAL1
João Quinelato de Queiroz
Professor de Direito Civil do IBMEC. Mestre e Doutorando em Direito Civil pela
UERJ. Advogado. Presidente da Comissão de Direito Privado e Novas Tecnologias do
Conselho Federal da OAB. Secretário-geral da Comissão de Direito Civil da OAB-RJ.
Diretor Financeiro do Instituto Brasileiro de Direito Civil - IBDCivil.
“Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”.2
1. INTRODUÇÃO
Juliana, 26 anos, é vítima de boato que gravemente atinge sua honra, imagem e
bom nome, que circulou por grupos de Whatsapp e Facebook. Narrava o boato que
a jovem teria se envolvido em relações sexuais dentro de um veículo e, durante o ato,
supostamente teriam ocorridos fatos íntimos desagradáveis à vítima. O material teria
circulado por 332 contas de Facebook, com 251 curtidas, 72 comentários e inúmeros
grupos de Whatsapp, todos listados nos autos.3 Desde a data do ajuizamento da ação,
transcorreram-se 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de duração do processo sem que o
judiciário tenha dado, ainda, a última palavra sobre o caso. Nesse tempo, Juliana era
alvo de chacotas e gracejos em grupos de WhatsApp e Facebook.
Um segundo caso remonta ao famoso caso da escola Base de São Paulo,4 mas
desta vez, ocorrido nas redes sociais e não na mídia impressa e televisiva. Eis o caso:
1. O presente artigo é um ensaio realizado a partir da obra “Responsabilidade Civil na Rede: danos e liberdades
à luz do Marco Civil da Internet, Editora Processo, 2019 também de minha autoria, onde o leitor poderá
encontrar pormenorizados os argumentos aqui sintetizados.
2. Paul Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Adolf Hitler na Alemanha Nazista (MOORE, Mike. A
World Without Walls: Freedom, Development, Free Trade and Global Governance. Reino Unido: Cambridge
University Press, 2003, p. 63).
3. TJPR, 11ª Câmara Cível, processo número 0033794-69.2015.8.16.0000, rel. Des. Sigurd Roberto Bengtsson,
julg em 22/02/2017.
4. A Escola Base era localizada na Cidade de São Paulo e em 1992 foi alvo de queixas de agressões e assédio
sexual cometidos contra seus alunos, crianças, supostamente promovidas pelo casal dono do estabeleci-
mento. As queixas foram publicadas em jornais de grande circulação e, inclusive, no Jornal Nacional da TV
Globo. Posteriormente à divulgação dos fatos, apurou-se que eram falsos. Os donos da escola ajuizaram
ação em face de veículos de mídia e receberam indenizações pelos danos sofridos. (STJ, REsp 351779 SP,
2001/0112777-9, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, julg. em 19/11/2002). Sobre o tema, vide: RIBEIRO,
Alex. Caso Escola Base: Os abusos da imprensa. São Paulo: Editora Ática, 2003.
JOÃO QUINELATO DE QUEIROZ
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Jonatas Vaz, tio de Mariana Vaz, criança negra, publica em sua timeline que a escola
onde sua sobrinha estudava, em Bauru-SP, teria feito “vista grossa” para os comentá-
rios racistas de outras crianças da escola em relação à sua sobrinha. Em um período
de apenas quatro dias, a publicação em questão foi compartilhada mais de 825 vezes,
além de receber 883 curtidas e 91 comentários por usuários do Facebook. A escola
ajuíza ação com pedido de liminar requerendo a retirada do conteúdo ofensivo da
página do tio da aluna, sustentando que as alegações, além de inverídicas, eram di-
famatórias e abalavam a credibilidade da escola perante a comunidade. Indeferida a
liminar, foi julgada procedente a demanda em primeira instância, condenando o tio a
indenizar o estabelecimento e a retirar o conteúdo.”5 Desde a data do ajuizamento da
ação, transcorreram-se 2 (dois) anos e 10 (dez) meses para que a demanda transitasse
em julgado. Enquanto isto, a escola viu-se de mãos atadas em face do comentário
danoso do Autor, cuja veracidade não foi comprovada nos autos pelo autor da ofensa.
Sr. José Pedro Toniello, ex-prefeito do pacato município de Nova Independên-
cia, SP, é alvo de postagem no Facebook que questionava a honestidade do político
o qual supostamente teria contratado funcionários fantasmas durante a sua gestão.
Ajuíza ação em face dos autores das postagens requerendo a exclusão imediata do
conteúdo e indenização por danos morais, julgada improcedente sob o argumento
de que “pelo fato de ter exercido um cargo público, seus atos interessaram à coleti-
vidade e podem ser alvo de críticas e ataques”.6 Entre a data do ajuizamento da ação
e a decisão transitada em julgado, transcorreram-se 2 (dois) anos e 8 (oito) para que
o judiciário desse a última palavra sobre o caso.
De comum, entre esses casos, há mais que usuários da internet alegando violações
graves à sua dignidade e reputação. Há o decurso de um longo prazo sem que a justiça
tenha resolvido o problema que a ela foi apresentado, revelando a inef‌icácia de meios
judiciais para resolver os dilemas do mundo digital. A lentidão judicial, portanto,
contrapõe-se à rapidez da internet. Na lição de Stefano Rodotà, a nova angústia nasce
da consciência da forte defasagem entre a rapidez do progresso técnico-científ‌ico e a
lentidão com que amadurecem a capacidade de controle dos progressos sociais que
acompanham tal progresso”.7
Os diferentes casos comungam, também, o aparente confronto entre os direitos
constitucionais à liberdade de expressão (art. 5º IX da Carta da República) e a intimi-
5. Apela o tio-réu alegando que havia feito um mero desabafo em rede social insuscetível de causar danos
morais à escola. Apelação julgada improcedente e mantida a condenação pelo TJSP, assentando o arresto
que não se tratou de um mero desabafo em página de rede social mas sim de ato ilícito que causou danos
à imagem e à reputação da requerente, o que faz emergir a responsabilidade civil do réu. (TJSP, Apelação
Cível nº 1006024-23.2014.8.26.0071, 1ª Câmara de Direito Privado, rel. Des. Christine Santini, julg em
30/08/2016).
6. O entendimento da primeira instância foi ratif‌icado em segunda instância, onde destacou-se que não hou-
ve grande repercussão pelo baixo número de curtidas e compartilhamentos. (TJSP, 8ª Câmara de Direito
Privado, apelação cível nº 0009576-57.2014.8.26.0024, rel. Des. Grava Brazil, julg em 17/10/2016).
7. RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância (coord. Maria Celina Bodin de Moraes). Rio de Janeiro:
Renovar, 2008.p. 42.
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dade, a vida privada, a honra e a imagem dos envolvidos (art. 5º X da Constituição).
Por derradeiro, todos os casos revelam como curtidas, compartilhamentos, likes,
retweetes e ferramentas do gênero são meios relevantes para se aferir a repercussão
da mensagem ofensiva.
Não é crível que em tempos de big data, armazenamento em nuvem e comuni-
cação instantânea, um dilema da internet leve décadas para ser resolvido, ao passo
que bastam alguns poucos minutos para um boato pornográf‌ico ou uma grave ofensa
se disseminarem por grupos de WhatsApp, timelines do Facebook ou Twitter.8
um descompasso entre a rapidez com que avançam as inovações tecnológicas e a
lentidão com que o Direito reage a esses desaf‌ios. Conforme magistério de Stefano
Rodotà, “ao lado da percepção, sempre mais clara, dos riscos do progresso tecnoló-
gico, existe a consciência da impossibilidade de parar tal progresso, mesmo se este
não se apresenta mais com estimativas apenas positivas”.9 Fica a indagação inicial:
há, no Brasil, mecanismos de responsabilidade civil capazes de responder, em tempo
e adequadamente, às violações da intimidade e vida privada dos usuários do What-
sApp, Twitter, Facebook e congêneres, sem comprometer os níveis de liberdade de
expressão que se esperam da internet?10
Os (nem tão) novos meios de comunicação e informáticos são uma realidade da
qual não se quer retroceder. O progresso civilizatório depende, essencialmente, de
uma internet aprimorada. Stefano Rodotà resgata que as tecnologias da informação
e da comunicação oferecem grandes oportunidades para promover uma cidadania
ativa, destacando que através das novas ferramentas, resgata-se o cidadão da passi-
vidade de espectador, tornando-o um protagonista democrático, em um ambiente
onde desaparecem as distinções entre produtores e consumidores de informação. Ao
admitir a internet como uma peça fundamental para a democracia, o autor reforça a
necessidade de políticas públicas adequadas que garantam a convivência harmônica
desses progressos com os direitos fundamentais, com a liberdade de escolha e com
o respeito da dignidade.11
8. Já comentamos, em outra oportunidade, o efeito nefasto de um boato: “O argumento do “tem um fundo de
verdade”, tão corriqueiro na sociedade brasileira, não se dissipa com facilidade e a supressão do conteúdo
falso ou difamatório da internet revela-se apenas o primeiro passo de um longo caminho a ser percorrido
pela vítima na restauração da sua reputação.” (SCHREIBER, Anderson. Marco Civil da Internet: avanço ou
retrocesso? A responsabilidade civil por dano derivado do conteúdo gerado por terceiro. In DE LUCCA,
Newton; SIMÃO FILHO; Adalberto; LIMA, Cíntia Rosa Pereira de (coords). Direito & Internet – Tomo II:
Marco Civil da internet (Lei nº 12.965/2014). São Paulo: Quartier Latin, 2015).
9. RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 191.
10. A respeito dos novos danos trazidos pelas inovações tecnológicas e os desaf‌ios deles derivados aos sistemas
de responsabilidade civil, destaca Maria Celina Bodin de Moraes: “Em nossa época – é voz corrente – há
muitíssimas mais ocasiões de risco, de perigo, em decorrência, não só mas também, do acentuado desenvol-
vimento tecnológico; neste sentido, conclui-se ter havido um real incremento das possibilidades de causação
de danos. (...). (BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2003,
p. 150).
11. RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância, cit., p. 160-163.

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