Direitos autorais e acesso à cultura

AutorMicaela Barros Barcelos Fernandes
Páginas153-179
DIREITOS AUTORAIS E ACESSO À CULTURA
Micaela Barros Barcelos Fernandes
Doutoranda em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Direito da Empresa e Atividades
Econômicas pela UERJ. Mestre em Direito Internacional e da Integração Econômica
pela UERJ. Pós-graduada em Direito da Economia e da Empresa pela FGV/RJ. Graduada
em Direito pela UFRJ. Advogada e membro das Comissões de Direito Civil e de Direito
da Concorrência da OAB-RJ.
1. INTRODUÇÃO
Este artigo tem por objetivo trazer elementos para o entendimento da relação
entre os direitos autorais e o acesso à cultura, tendo sido dividido em seis partes.
Na primeira, a cultura e o patrimônio cultural são identif‌icados como bens
comuns, de interesse de toda a coletividade. A liberdade de criação e o acesso a bens
culturais foram incluídos entre os direitos fundamentais consagrados em nossa
ordem jurídica. É destacado que o tratamento jurídico à cultura, como bem comum
que é, a despeito de seguir lógica proprietária, impõe a preocupação com o acesso
por todas as pessoas.
Na segunda parte é feita uma apresentação panorâmica do tratamento aos direitos
culturais na ordem brasileira, em que são evidenciadas as tensões entre diferentes
interesses, ora passíveis de convivência sem maiores dif‌iculdades, ora sujeitos a
conf‌lito. Ante a complexidade dos interesses, impõe-se ao intérprete equilibrar a
medida de cada tutela nos casos concretos.
Na terceira, os direitos autorais são apresentados como possível forma de trata-
mento dos bens culturais. Os bens objeto da criação humana são sujeitos a diferentes
regimes, e os direitos autorais foram formulados para viabilizar a composição de
interesses individuais e coletivos, na medida em que conferem exclusividade, mas
também restrições aos titulares, em um sistema de incentivos e compensações.
Na quarta parte são tratadas as restrições à exclusividade. Os direitos autorais,
instrumentais que são, se funcionalizam apenas na medida em que atendem aos
valores contemplados na Constituição. As restrições consistem principalmente em
limitações ao direito de autor autorizadas pela lei durante a vigência da exclusividade
e na perda da exclusividade, após a vigência do período de proteção, pelo regime do
domínio público.
Na quinta seção, chama-se atenção para o fato de que a f‌lexibilização da ex-
clusividade proprietária conferida ao titular da criação autoral, apesar de reduzir
os impedimentos ao acesso aos bens culturais pela coletividade, não garante que o
acesso ocorrerá, em pleno atendimento da função social da propriedade. São, então,
abordados os papeis dos particulares e, sobretudo, dos órgãos integrantes do Poder
Público na viabilização do acesso e no cumprimento dos deveres que lhes são im-
MICAELA BARROS BARCELOS FERNANDES
154
postos para a promoção da cultura e proteção do patrimônio cultural, tendo em vista
principalmente o princípio da pluralidade.
Por f‌im, no sexto e último item do trabalho, pretende-se trazer alguma ponderação
sobre o quanto o sistema em vigor de proteção aos direitos autorais, que funcionou,
mesmo que sob críticas, por certo tempo, ainda é capaz de adequadamente compor os
diferentes interesses em jogo na era digital. Com efeito, tanto os criadores e titulares
não têm obtido a proteção que recebiam antes das mudanças disruptivas ocorridas no
f‌inal do século XX e início do XXI, quanto a coletividade vem recebendo, em resposta,
uma legislação mais restritiva, que contraria seus interesses, a despeito de pouco ef‌icaz.
2. CULTURA E PATRIMÔNIO CULTURAL: BENS COMUNS E DIREITOS
FUNDAMENTAIS. IMPORTÂNCIA DA GESTÃO PARA O ACESSO
Toda pessoa, no meio em que inserida, se inf‌luencia pelo meio e também in-
f‌luencia o meio em que vive, sendo a experiência cultural determinante na constru-
ção da própria identidade e condição para o desenvolvimento da personalidade. Os
bens culturais produzidos no seio de um grupo social, como qualquer produto de
manifestação cultural, revelam muito sobre o seu contexto histórico e a forma de
viver das pessoas.
Embora se possa escolher, conforme os valores fundantes de cada sociedade,
que destinação deve ser dada aos bens culturais1, o fenômeno cultural não é, em si,
apropriável, titularizável, por quem quer que seja. A cultura não pode ser entendida
como um bem público, no sentido de pertencente ao Estado, tampouco privado, ti-
tularizada por um indivíduo ou grupo de indivíduos em particular, destinando-se, ao
revés, ao proveito geral de todos, inclusive para intermediação das relações humanas.
Cultura, assim como o conhecimento, e outros bens de interesse geral da coletividade,
como muitos ligados à natureza e ao meio ambiente (por exemplo, f‌lorestas, mares,
entre outros) se encaixam melhor na def‌inição do que se costuma chamar de bens
de uso comum em geral, ou simplesmente bens comuns, na literatura estrangeira
identif‌icados como common pool resources2 ou commons3, cuja característica básica é
1. Na ordem brasileira, em função da característica amplamente reconhecida da cultura como essencial à for-
mação da personalidade e ao sentimento de pertencimento social, hoje entendida como direito fundamental,
e não apenas porque expressamente presente o reconhecimento desse status no texto constitucional, mas
também em razão da cláusula geral de tutela da dignidade da pessoa humana, valor supremo em nossa
normativa constitucional. Neste sentido: do ponto de vista material, são direitos fundamentais aqueles direi-
tos que ostentam maior importância, ou seja, os direitos que devem ser reconhecidos por qualquer Constituição
legítima. Em outros termos, a fundamentalidade em sentido material está ligada à essencialidade do direito para
implementação da dignidade humana. PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos
fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. Pág. 577.
2. SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial. São Paulo: Malheiros, 2013. Pág. 365.
3. HARDIN, Garrett. The tragedy of the commons. In Science 13 Dec 1968: Vol. 162, Issue 3859, Págs. 1243-
1248
DOI: 10.1126/science.162.3859.1243. Disponível em https://www.science.org/doi/abs/10.1126/scien-
ce.162.3859.1243. Acesso em: 21-05-2019.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT