Efeitos da Liberação de Atividades Empresariais para Terceirização sobre Situações Transatas

AutorJosé Augusto Rodrigues Pinto
Páginas132-142

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1. Introdução

Esta coletânea de estudos de conhecidos cultores do direito material e processual do trabalho dedica-se à análise das propostas constantes do projeto de lei que se convencionou intitular “Reforma Trabalhista” ou, mais simplificadamente, “Reforma da CLT”, a esta altura cristalizada nas disposições da Lei n. 13.467, de 13.07.2017.

A nosso modesto entender, o título dado àquele projeto foi mais ambicioso do que o seu conteúdo. De fato, alterações que sua conversão em lei trouxe à CLT não têm a profundidade de uma mudança estrutural, nem do Direito do Trabalho, ainda construído sobre o conjunto de princípios inspirados na proteção do hipossuficiente econômico, nem da normatização que os positiva em regras de conduta. Seu propósito, na verdade, conteve-se no limite conceitual da atualização legislativa, que é uma consequência natural da necessidade de rever periodicamente, em maior ou menor extensão, um regramento em vigor para mantê-lo apto a fazer chegar a força do direito aos fatos sociais, cujo ritmo evolutivo é sensivelmente mais veloz.

A própria história do Direito do Trabalho brasileiro e do seu Processo nos mostra isso em pelo menos três grandes atualizações sofridas pela CLT, desde a estratificação de 1943, tão idênticas na intenção e extensas no alcance quanto as da Lei n. 13.467/2017, sem mudar a essência estrutural dos ramos jurídicos. Podemos identificá-las no Decreto-lei n. 229, de 28.02.1967, na Lei n. 5.442, de 24.05.1968, e na Lei n. 5.584, de 26.06.1970.

Merece particular menção a Lei n. 5.107, de 13.09.1966, em face do impacto causado pela criação do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço como alter-nativa à garantia da estabilidade decenal. Considerada, na sua época, a conquista mais emblemática do trabalhador brasileiro, a estabilidade decenal conheceu, desde então, progressivo declínio até ser definitivamente extinta com a Constituição de 1988, marco de sua definitiva substituição pelo regime do FGTS. Tal alteração, entretanto, não causou a hecatombe institucional do Direito do Trabalho que foi profetizada por uma boa dezena de ardentes libelos publicados “em defesa da estabilidade”1, sem aparentemente ter deixado nos trabalhadores que a vivenciaram nenhum sentimento de perda irreparável, nem nos mais novos sequer a memória de ter existido algum dia.

Lembramos esse episódio como sinal de que as mudanças das leis com bom-senso e imaginação, para acompanhar a progressão da vida social e das relações jurídicas que lhes incumbe ordenar, não são, por determinismo genético, obras destrutivas de conquistas. Bem ao contrário, são construtivas de aprimoramento da civilização pela criatividade humana.

Portanto, parece-nos correto concluir, numa reflexão serena sobre a Lei n. 13.467/2017, que o seu propósito é de acertar o passo da legislação trabalhista brasileira com os avanços impossíveis de deter da Revolução Tecnológica do século XXI, sem desprezo nem nostalgia pelos êxitos históricos da Revolução Industrial de séculos passados.

Conclui-se, nesse caso, que as atualizações por ela aportadas têm o caráter do que, realmente, urge fazer.

Seus resultados descortinam muitos novos e fascinantes temas a explorar, tais como os limites de atuação equilibradamente integrada do legislado com o negociado, o direito ambiental no trabalho, a flexibilização responsável da relação de emprego, a regulação do trabalho a distância, a efetividade da execução trabalhista, entre

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tantos outros aspectos que, trazidos à baila pela atividade legiferante no terreno das relações individuais e da sua projeção processual, têm atualmente eivado seu debate pelo veneno do maniqueísmo ideológico e político que nesta quadra da História do Brasil vem estilhaçando impiedosamente nossa unidade social.

A eles somente ainda falta acrescentar a reforma (aí, sim, por importar em mudança de estrutura) do direito sindical, a começar pela demolição do teratológico conúbio constitucional da liberdade com a unicidade sindical, responsável pelos quase 20.000 sindicatos do país, e do estupefaciente imposto sindical (mascarado de contribuição), cujos projetos de lei, elaborados com base nas proposições do Fórum Trabalhista realizado no início deste século, dormem em alguma tenebrosa gaveta do Congresso Nacional.

Dentro da profusão dos temas abertos pela Lei
n. 13.467/1917, pinçamos um dos mais ilustrativos do maniqueísmo que acabamos de referir. Trata-se da terceirização, estigmatizada pelos mais diversos estamentos do nosso trabalhismo como tabu, pequena palavra polinésia que expressa “aquilo que é proibido” e, por isso, “impõe a inibição social e/ou cultural subentendida de falar de certos assuntos ou de assumir certas posturas ou formas de agir”.2

Daí termos recebido a promulgação e publicação dessa Lei, antecedida muito de perto pela de n. 13.429, de 31.03.2017, ambas liberatórias da terceirização de todas as atividades da empresa, inclusive a atividade-fim, como a quebra de um tabu.

Convém dizer que a tenaz resistência dos opositores dessa liberação ainda procurou colocar em dúvida sua irrestritividade, sob o argumento de que a adjetivação de “determinados” dada aos serviços que mencionou no art. 4º-A, acrescentado à Lei 6.019/1974 para definir a empresa prestadora se referia à duração, e não ao objeto do contrato. Confira-se in literis:

(Interpreto que) o legislador não autorizou a liberação geral da terceirização para as atividades-fim da empesa, mas tão-somente para as atividades-meio desta, pois, quando quis ser expresso na terceirização de atividade-fim, o fez, como foi o caso do trabalho temporário. O ideal seria que estas só ocorressem por prazo certo com fim específico, dando um sentido lógico para a inclusão dos arts. 4º-A e 5º-A, na lei que trata do trabalho temporário. 3

Esta nunca foi a ideia do legislador na Lei n. 13.429, data venia. Tanto que a Lei n. 13.467, que a sucedeu logo em seguida, varreu essa tendenciosa interpretação de sua vontade a respeito da liberdade absoluta da terceirização de serviços, com esta disposição de seu art. 5º-A, também inserido na Lei n. 6.019/1974:

Art. 4º-A. Considera-se transferência de serviços a terceiros a transferência feita pela contratante da execução de suas atividades, inclusive sua atividade principal, à pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviços que possua capacidade econômica compatível com a sua execução (grifo nosso).

Ressai da norma a clareza solar de que a única exigência para a terceirização de qualquer atividade empresarial, seja ela meio ou fim, é de que a empresa prestadora (terceirizada) tenha idoneidade econômica para executá-la, observadas, evidentemente, as exigências formais relativas à própria contratação. Sa va de soi que o “serviço determinado” nada tem a ver com duração determinada da tercerização; significa apenas a necessidade de especificação e determinação da ativi-dade ajustada, circunstância ínsita no objeto de todos os contratos.

Entretanto, não é da liberação, em si, que decerto continuará alimentando a diáspora de opiniões sobre a terceirização, que se ocupa nosso trabalho. Seu foco está dirigido a um aspecto que, parecendo simples pormenor, disfarça uma consequência de enorme relevo prático da liberação, a saber, o efeito, que, posta nos termos da Lei n. 13.467 e, mesmo antes disso, da Lei n. 13.429, produz sobre as dezenas de ações que estão em curso, as decisões judiciais já transitadas, ou não, em julgado, os termos de ajustamento de conduta, homologados ou não, com o Ministério Público do Trabalho, em execução ou em negociação, todos constringindo um sem-número de empresas à obrigação negativa de terceirizar atividade-fim sob cominação de nulidades e astreintes.

Em outras palavras, o alvo de nossa atenção é: como tratar, hoje, essas situações transatas?

Eis aí a motivação das reflexões que desenvolveremos, calçadas na prévia revivescência histórica que ilumina a imagem e as causas dos ásperos confrontos provocados pela terceirização em todos os círculos de estudo da relação jurídica de trabalho, desde que sua figura apareceu entre nós.

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2. A guerra da terceirização no Brasil: breve histórico

Não consideramos exagerado dizer que, à medida que cresceu o vulto da terceirização, sob o influxo da tecnologia, foi sendo transformado em arena de uma feroz guerra de opiniões, alimentada pela intolerância ideológica das posições antípodas assumidas, na doutrina e na prática. De um lado, entrincheiram-se os que que veem, por trás dela, a amputação de direitos e garantias dos trabalhadores e a precarização do emprego; de outro, os que veem, à sua frente, a inevitabilidade de alinhamento do perfil das relações de trabalho e de emprego com a realidade das transformações da Revolução Tecnológica, embora preservando, sem rupturas irremediáveis, o amálgama econômico e social que forjou e mantém vivo o Direito do Trabalho emancipado dos princípios do Direito Comum.

O antagonismo se extremou graças à impenitente má vontade de ambos os lados da contenda em aceitar a ver-dade de que o capital e o trabalho precisam ser parceiros, e não inimigos, na produção da riqueza. Essa incompreensão demoniza a figura da terceirização desde que ela chegou até nós, no último quartel do século XX, com os contornos remotamente provindos, porém modernamente diferenciados, da ancestral figura da marchandagem.

A demonização levou-a por todos esses longos anos a patinar no limbo das escaramuças e a tatear na névoa das interpretações preconceituosas, até a difícil chegada à recente regulamentação da Lei n. 13.467/2017, ela mesma...

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