Investigação e julgamento dos crimes de feminicídio: diretrizes da onu e protocolo do CNJ

AutorJuliana Mendonça Gentil Tocunduva
Ocupação do AutorEspecialização Diritto Penale e Violenza Domestica ? Crimini di Genere e Abusi contra i Minori ? Università degli Studi di Roma Tor Vergata ? 2016. Promotora de Justiça em São Paulo desde 1999, titular na Promotoria de Justiça do III Tribunal do Júri da Capital desde 2012 e, desde 2019, com atuação na Casa da Mulher Brasileira. Coordenadora do ...
Páginas171-188
INVESTIGAÇÃO E JULGAMENTO
DOS CRIMES DE FEMINICÍDIO:
DIRETRIZES DA ONU E PROTOCOLO DO CNJ
Juliana Mendonça Gentil Tocunduva
Especialização Diritto Penale e Violenza Domestica – Crimini di Genere e Abusi
contra i Minori – Università degli Studi di Roma Tor Vergata – 2016. Promotora
de Justiça em São Paulo desde 1999, titular na Promotoria de Justiça do III
Tribunal do Júri da Capital desde 2012 e, desde 2019, com atuação na Casa da
Mulher Brasileira. Coordenadora do Projeto Re.nata (projeto de acolhimento
de vítimas diretas e indiretas de feminicídio tentado e consumado). Membro da
COPEVID (Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar
contra a mulher).
Sumário: 1. Introdução – 2. Feminicídio – 3. Condenações anteriores por tribunais inter-
nacionais – 4. Diretrizes da ONU e protocolo do CNJ – 5. Projeto Re.nata – 6. Considerações
nais – Referências.
Resumo:
As melhorias no campo do direito com leis de proteção às mulheres são importantes
e representam um avanço no reconhecimento de todas como sujeito de direitos humanos
que são. No entanto, ainda não são satisfatórias para que a efetivação desses direitos se
verique de maneira plena. O presente artigo pretende discorrer sobre a importância de
um novo olhar, sendo fundamental a inclusão da perspectiva de gênero na formação de
todos e todas operadores do direito e a abertura de diálogo direto com as vítimas diretas
e indiretas, visando a reparação integral pela violência sofrida, não só para ela, mas para
toda sociedade.
1. INTRODUÇÃO
A violência contra mulheres e meninas na sociedade foi naturalizada e es-
truturada ao longo da história.
O Brasil Colonial era regido pelas Ordenações do Reino (Ordenações Fili-
pinas),1 absolutamente discriminatórias para as mulheres, que asseguravam ao
marido o direito de matar a mulher surpreendida cometendo adultério ou quando
houvesse suspeita de traição.
1. Brasil, Ordenações do Reino. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/242733. Acesso
em: junho 2022.
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O desequilíbrio das relações de poder e a manutenção da hierarquia masculi-
na foi mantida no Código Penal de 18902, que livrava da condenação quem matava
em estado de completa privação de sentidos, e prosseguiu com o Código Penal
de 19403 que estabelece como causa de diminuição de pena agir sob o domínio
de violenta emoção4. E não é raro tal alegação ser sustentada, ainda nos dias de
hoje, em casos de feminicídio.
A legítima defesa da honra, construção doutrinária e não lei, foi usada ex-
pressamente ou não, por muito tempo, em muitos casos, para responsabilizar a
vítima e minimizar o ato praticado pelos agressores. Aliás, o caso mais emblemático
de tal argumentação pode ser visto no podcast “Praia dos Ossos”, que retratou o
julgamento do Doc Street pelo assassinato de Ângela Diniz.5
Como se vê, as leis continuaram reproduzindo a ideia de que o homem é
superior, como no Código Civil de 1916 que estabelecia que mulheres casadas
eram consideradas incapazes (art. 6, II); que necessitavam de autorização do
marido para trabalhar (art. 233, IV) e de autorização marital para aceitar herança
(art. 242, IV).6
É a desigualdade de gênero que coloca a mulher em uma posição de inferio-
ridade, de subordinação e vulnerabilidade, bem como é a base de estruturação,
legitimação e perpetuação das formas de violência, privação e opressão contra
a mulher.
Como bem menciona Heleieth Saoti: “Violência de Gênero, inclusive em
suas modalidades familiar e doméstica, não ocorre aleatoriamente, mas deriva
de uma organização social de gênero, que privilegia o masculino.7
A igualdade entre homens e mulheres foi consagrada na Constituição Fede-
ral de 19888 e a partir dela foram elaboradas diversas leis visando a proteção das
mulheres e meninas, como a Lei Maria da Penha e os mecanismos de proteção
2. BRASIL. Decreto 846/1890. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/
d847.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%20847%2C%20DE%2011%20DE%20OUTUBRO%20
DE%201890.&text=Promulga%20o%20Codigo%20Penal.&text=Art.,que%20n%C3%A3o%20
estejam%20previamente%20estabelecidas. Acesso em: junho de 2022.
3. BRASIL. Decreto-Lei 2.848/1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/
del2848.htm. Acesso em: junho de 2022.
4. Brasil - Jornal do Senado/2013. Disponível em: https://www.geledes.org.br/na-epoca-do-brasil-colo-
nial-lei-permitia-que-marido-assassinasse-a-propriamulher/. Acesso em: julho de 2022.
5. BRASIL – Podcast Praia dos Ossos. Disponível em: www.radionovela.com.br – acesso em: julho de
2022.
6. BRASIL. Código Civil de 1916. Lei 3.071, de 1º de janeiro de 2916. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/l3071.htm. Acesso em: julho de 2022.
7. SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado e violência. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular e Fundação
Perseu Abramo. 2015, p. 85
8. BRASIL. Constituição Federal de 1988. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.
htm. Acesso em: julho de 2022.
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