Violência de gênero como uma forma de trauma: reflexões para o acolhimento e cuidado de vítimas

AutorArielle Sagrillo Scarpati
Ocupação do AutorDoutora em Psicologia Forense (University of Kent). Mestre em Psicologia Social (UFES) . Pós-Doutorado Jr (UFRGS) e Pós-graduanda em Terapia Cognitivo Comportamental pela PUC-RS. Desde 2009, trabalha com pesquisa, intervenções clínicas e sociais; com ênfase nas vulnerabilidades sociais, violência(s) de gênero, masculinidade e saúde mental.
Páginas127-142
VIOLÊNCIA DE GÊNERO COMO UMA
FORMA DE TRAUMA: REFLEXÕES PARA O
ACOLHIMENTO E CUIDADO DE VÍTIMAS
Arielle Sagrillo Scarpati
Doutora em Psicologia Forense (University of Kent). Mestre em Psicologia Social
(UFES) . Pós-Doutorado Jr (UFRGS) e Pós-graduanda em Terapia Cognitivo Com-
portamental pela PUC-RS. Desde 2009, trabalha com pesquisa, intervenções
clínicas e sociais; com ênfase nas vulnerabilidades sociais, violência(s) de gênero,
masculinidade e saúde mental. Coordena a frente de conteúdo teórico da ini-
ciativa Coalizão Empresarial para o Enfrentamento da Violência contra Meninas
e Mulheres e paralelamente, atua como: a) consultora técnica de entidades
públicas e privadas em suas áreas de expertise, b) supervisora clínica (para
prossionais da Psicologia) e c) psicóloga clínica; atendendo especialmente
mulheres vítimas de trauma e/ou violações. Psicóloga.
Sumário: 1. Introdução – 2. Violência baseada no gênero (VBG): do que estamos falando?3.
Um parêntese importante: estresse, estresse tóxico e trauma – 4. Violência baseada no gênero
e trauma: implicações para o cuidado e acolhimento – 5. Comentários nais – Referências.
1. INTRODUÇÃO
A violência é, em certo sentido, democrática e mulheres ao redor do globo
– independentemente de seu status social, raça, faixa etária ou orientação sexu-
al – são submetidas à diferentes formas de violência simplesmente por serem
mulheres. Sendo que nos casos mais extremos, a violência contra as mulheres
pode levar à morte. Estima-se, por exemplo, que 137 mulheres são mortas por
um membro de sua própria família todos os dias (UNITED NATIONS, 2020).
Dentre aquelas que sobrevivem, menos de 40% procuram ajuda de qualquer tipo
(UNITED NATIONS, 2015, p. 159) e neste universo das que procuram, a maioria
recorre à família e/ou amigos em detrimento de instituições formais, tais quais
a polícia, os serviços de saúde ou de assistência social. Frente ao exposto, duas
questões se fazem pertinentes: O que impede essas mulheres de acessarem esses
dispositivos? E como facilitar e fomentar esse acesso?
Algumas das respostas para essas perguntas já foram construídas. Com re-
ferência à primeira pergunta, sabe-se, por exemplo, que a experiência de culpa,
vergonha, medo e/ou desamparo pode interferir negativamente no comparti-
lhamento das experiências e busca por garantia de direitos (MOREIRA; BLOC;
VENÂNCIO, 2011). Da mesma forma, o desconhecimento dos ritos e/ou o mau
acolhimento por parte de funcionários de diferentes instituições (i.e., por falta de
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capacitação adequada ou crenças pessoais) contribui para que vítimas abandonem
os processos ou sequer procurem ajuda.
A segunda pergunta, por sua vez, se impõe de maneira mais desaadora na
medida em que, no campo dos sentimentos e das vivências particulares, se exige
mais do que armações genéricas de que “a culpa nunca é da vítima”. Facilitar e fo-
mentar o acesso aos dispositivos pertinentes envolve trabalho intencional e escuta
ativa. É preciso um trabalho conjunto, continuado e colaborativo. É preciso que
exista espaço de escuta, tempo de elaboração das vivências, vínculos adequados e
reexão sobre os sentimentos experimentados. Neste terreno, há muito que pode
e que precisa ser feito; e há muitos (sujeitos) que podem fazer.
Pensando nisso, este capítulo se propõe contribuir com o rompimento do que
Bradbury-Jones et al. (2014) nomearam como uma forma de “dinâmica do silêncio”
entre mulheres agredidas e prossionais; que é reexo da diculdade experiencia-
da por vítimas e prossionais no contato e acolhimento destas experiências. Na
primeira parte do texto, a) serão discutidas as características e efeitos da violência
baseada no gênero (VBG) na saúde e no bem-estar de mulheres vitimadas, para em
seguida b) apresentar esta violação em sua relação com a experiência traumática
para, então, c) explorar as maneiras pelas quais essas informações podem ser úteis
para a tarefa do acolhimento e cuidado deste público; especialmente por parte
daqueles que não foram necessariamente preparados para tal atividade.
2. VIOLÊNCIA BASEADA NO GÊNERO (VBG): DO QUE ESTAMOS
FALANDO?
Para iniciar esse debate, é importante conceituar o que é violência. De acor-
do com a Organização Mundial de Saúde (KRUG et. AL, WORLD HEALTH
ORGANIZATION, 2002), a violência pode ser denida “como o uso intencional
da força física ou do poder – seja ela ameaçada ou real – contra si, contra outra
pessoa ou grupo, acarretando lesão, morte, dano psicológico, privação ou desen-
volvimento comprometido.” A violência baseada no gênero (VGB) ou violência
de gênero (VG), por sua vez, ocorre como resultado da desigualdade nas relações
de poder entre homens e mulheres e faz referência às diferentes expressões de
violência atreladas às expectativas de performance de gênero em cada um desses
grupos. Uma importante denição deste termo pode ser retirada da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher –
Convenção de Belém do Pará (1994), que a considera: uma ofensa à dignidade
humana e manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre
mulheres e homens.
Na prática, essas violências tendem a ser praticadas por homens contra me-
ninas e mulheres e, por este motivo, não é raro que os termos “violência de gênero
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