Legitimidade das partes e a intervenção de terceiros na Lei 7.347/85

AutorMarcelo Abelha Rodrigues
Páginas201-243
CAPÍTULO 7
LEGITIMIDADE DAS PARTES E A
INTERVENÇÃO DE TERCEIROS NA LEI 7.347/85
1. ASPECTOS GERAIS DA LEGITIMIDADE
Como já tivemos oportunidade de enunciar, o processo é uma entidade complexa,
formada por sujeitos, objeto, pressupostos e f‌inalidades próprios. Justamente por ser
complexo, dinâmico, dialógico e cooperativo, o procedimento animado pela relação
jurídica processual atribui a todos os sujeitos que deles participam uma série de situa-
ções jurídicas como faculdades, ônus, obrigações, deveres e poderes de acordo com o
ato processual respectivo.
Nesse diapasão é que se situa a f‌igura da legitimidade. O sujeito processual só estará
credenciado a atuar na posição jurídica processual respectiva se possuir legitimidade
para tanto.
Exatamente por isso, a palavra legitimidade exprime ideia de transitividade, de
caráter relacional, e só existe perante uma dada situação jurídica legitimante.1
Assim, só se é legítimo com relação a alguma coisa e/ou alguém, não sendo lícito
pensar que a legitimidade seja sinônimo de atributo de alguém e que por isso mesmo
exista de per si e acompanhe essa pessoa em qualquer situação.
Assim, v.g., o professor de processo civil contratado para lecionar essa disciplina está
legitimado para tal desiderato. Mas, se pretender entrar em sala vizinha, de contabilidade,
não terá legitimidade nem com relação ao objeto nem muito menos com relação à turma.
Mutatis mutantis, assim se passa na relação processual em movimento. Para exem-
plif‌icar, tomemos a atuação do parquet: enquanto órgão que atua como f‌iscal da ordem
jurídica2, portanto sujeito do processo, ele não é parte processual legítima para arguir
a exceção de convenção de arbitragem, que é medida exclusiva do réu e de interesse
privado, embora seja parte processual legítima para suscitar o conf‌lito de competência,
incidente motivado pelo interesse público.
1. Enrico Redenti. Il giudizio civile com pluralità di parte. Milão: Giuffrè, 1962 (reimpressão), n. 58, p. 75, nota n. 2; no mesmo
sentido, Salvatore Satta. Manual de derecho procesal civil, v. I, p. 132; Enrico Allorio. Problemas de derecho procesal, v. II, p. 263;
Luigi Monacciani. Azione e legitimazione. Milão: Giuffrè, 1951, n. 100, p. 268 e ss.; Arruda Alvim. Tratado de direito processual
civil, p. 342 e 343; Donaldo Armelin. Legitimidade para agir no direito processual civil brasileiro. São Paulo: Ed. RT, 1979, p. 2
e ss., entre outros.
2. CPC, Art. 178. O Ministério Público será intimado para, no prazo de 30 (trinta) dias, intervir como f‌iscal da ordem jurídica nas
hipóteses previstas em lei ou na Constituição Federal e nos processos que envolvam: I – interesse público ou social; II – interesse
de incapaz; III – litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana. Parágrafo único. A participação da Fazenda Pública não
conf‌igura, por si só, hipótese de intervenção do Ministério Público.
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AÇÃO CIVIL PÚBLICA E MEIO AMBIENTE • MARCELO ABELHA RODRIGUES
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O que se vê neste exemplo é que a legitimidade é variável, ou seja, depende da
posição jurídica assumida pelo sujeito processual em um determinado momento do
desenvolvimento do processo. Correto seria falar em situação jurídica legitimante3. As-
sim, podemos dizer que legitimidade é “a qualidade do sujeito em função do ato jurídico
realizado ou a realizar”.4
“legitimação é a coincidência entre a situação jurídica de uma pessoa, tal como resulta da postulação formu-
lada perante o órgão judicial, e a situação legitimamente prevista na lei para a posição processual que a essa
pessoa se atribui, ou que ela mesma pretenda assumir. Diz-se que determinado processo se constitui entre
partes legítimas quando as situações jurídicas das partes, sempre consideradas in statu assertionis – isto é,
independentemente da sua efetiva ocorrência, que só no curso do próprio processo se apurará –, coincidem
com as respectivas situações legitimantes”.5
Quando se fala em legitimidade ordinária ou legitimidade extraordinária, apenas
se está especif‌icando a legitimidade a partir de elementos da demanda, cujo espectro de
abrangência, por ordem lógica, está inserido na legitimidade dos sujeitos do processo.
É dessa legitimidade que cuidamos neste tópico.
A legitimidade tratada no parágrafo anterior está relacionada apenas com a de-
manda, e bem sabemos que sujeitos da demanda não se confundem com sujeitos do
processo. Aliás, bem por isso é que existe a legitimidade para demandar e a legitimidade
para praticar atos jurídicos no processo. O fato de não raras vezes o sujeito do processo,
legitimado a praticar determinado ato processual, ser também o sujeito da demanda não
nos permite criar uma regra ou premissa igualando as duas f‌iguras.
Não fosse assim, não teríamos como explicar, por exemplo, o fenômeno de se
permitir ao juiz suscitar o incidente de assunção de competência6. Podemos dizer que o
juiz possui legitimidade porque é sujeito do processo, embora obviamente não a possua
para a demanda.
2. LEGITIMIDADE ORDINÁRIA OU EXTRAORDINÁRIA?
De posse desses conceitos preliminares, passemos então à análise da legitimidade
para agir (demanda) nas demandas coletivas com base na LACP7.
3. “ao passo que a legitimação resulta de uma sua posição, isto é, de um modo de ser para com os outros (...). CARNELUTTI, Fran-
cesco. Teoria geral do direito. São Paulo: Lejus. 1999, p. 384.; ver ainda FAZZALARI, Elio. Note in: tema di diritto e processo.
Milano: Dott. A Giuffrè, 1957, p. 126 e ss.; SATTA, Salvatore. Variazioni sulla legittimazione ad causam.
Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile v. 21, 1967, p. 640.
4. Cândido Rangel Dinamarco. Execução civil. 5. ed. p. 422. No mesmo sentido, Donaldo Armelin. Legitimidade para agir no direito
processual civil brasileiro. São Paulo: Ed. RT, 1979, p. 2e ss.
5. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ensaios e pareceres de direito processual civil – Apontamentos para um estudo sistemático
da legitimação extraordinária. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971. p. 59.
6. CPC, Art. 947. É admissível a assunção de competência quando o julgamento de recurso, de remessa necessária ou de processo
de competência originária envolver relevante questão de direito, com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos
processos. § 1º Ocorrendo a hipótese de assunção de competência, o relator proporá, de ofício ou a requerimento da parte, do
Ministério Público ou da Defensoria Pública, que seja o recurso, a remessa necessária ou o processo de competência originária
julgado pelo órgão colegiado que o regimento indicar.
7. A ressalva é importante porque a legitimidade nas liquidações e execuções do art. 97 e 98 do CDC é tradicional já que se trata de
direitos individuais (heterogêneos). Apenas se aplica o que está dito no texto para a fase coletiva das ações coletivas para a defesa
de direitos individuais homogêneos (art. 91art. 95 do CDC) ou na persecução da f‌luid recovery do art. 100 do CDC.
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CAPítUlo 7 • lEgItImIdAdE dAS PARtES E A INtERVENção dE tERCEIRoS NA lEI 7.347/85
Como já foi dito, a tutela dos interesses difusos e coletivos mostrava-se def‌icitária
até 1985, justamente por causa da dif‌iculdade (fruto da concepção individualista) de
se identif‌icar o titular do direito material difuso e, assim, atribuir-lhe a titularidade do
poder de agir na tutela desses direitos.
A lei de ação civil pública representou, portanto, uma superação dessa dif‌iculdade,
na medida em que reconheceu como legitimados para propor a ação coletiva os entes
arrolados no art. 5º (art. 82 do CDC); tratou abstrata e objetivamente, à brasileira e sem
qualquer demérito, como adequados representantes dos titulares dos interesses difusos
na perseguição em juízo desses valores.
Tomando por análise o art. 5º da Lei n. 7.347/85 e o art. 82 da Lei n. 8.078/90,
endossado pelo art. 129, § 1º da CF/88, verif‌ica-se que o legislador atribuiu a tais entes
(associações, sindicatos, Ministério Público, União, Estados, Municípios, Defensoria
Pública etc.) a legitimidade para perseguir em juízo a proteção dos interesses suprain-
dividuais.8
Essa “legitimidade”, como se disse, tem índole processual, e não deve ser classif‌i-
cada sob o manto tradicional e individualista que tipif‌ica a legitimidade em ordinária e
extraordinária. É que essa dicotomia clássica parte do pressuposto de que se identif‌ique
o sujeito do direito material a ser tutelado, para então poder dizer que a legitimidade
é do tipo ordinária (quando houver coincidência no plano material e processual) ou
extraordinária (quando o suposto titular do direito material não for o mesmo do direito
de agir).
Deve f‌icar bem claro ao leitor que, nas ações coletivas para a defesa de direitos me-
taindividuais, o eixo de análise deixa de ser a titularidade do direito material e passa a recair
sobre o (melhor) desempenho da atuação processual para proteger e tutelar esses direitos.
O móvel que impulsiona a qualif‌icação da legitimidade do condutor dos interes-
ses coletivos está diretamente relacionado com o melhor exercício do devido processo
legal – e tudo que isso representa – na condução de uma demanda coletiva em todo o
seu itinerário procedimental.
Interessante observar que na Regra 23, A, item 4 que trata dos pré-requisitos para o ajuizamento da class
action o referido diploma, porque admite a ação coletiva ativa e passiva, fala em “the representative parties
will fairly and adequately protect the interests of the class” (trad. livre: partes representativas que protegerão
de maneira justa e adequada os interesses da classe)
Assim, porque os critérios que def‌inem a referida legitimidade são absolutamente
diversos do que def‌inem a dicotomia ordinária e extraordinária, então, preferimos dizer
que a legitimidade é autônoma, porque, pelo menos na teoria, o legislador escolheu
considerando que estes entes coletivos seriam aqueles que poderiam ter o melhor de-
sempenho na atuação processual em prol dos interesses supraindividuais.
Nesse passo preleciona Dinamarco quando diz que:
8. A ampliação mencionada pelo art. 82 em comparação ao art. 5º da LACP foi conferir personalidade judiciária aos entes of‌iciais que
tiverem por f‌inalidade a defesa dos direitos e interesses metaindividuais a que estejam funcionalmente atrelados, legitimando-os,
pois, para atuarem em juízo (v.g. PROCONs).
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