Objeto de tutela na lei da ação civil pública

AutorMarcelo Abelha Rodrigues
Páginas41-79
CAPÍTULO 3
OBJETO DE TUTELA NA LEI
DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA
1. EXÓRDIO
Inicialmente, deve ser f‌ixada a premissa de que a Lei n. 7.347/85 é uma lei
predominantemente processual. Isso deve-se ao fato de que cuida precipuamente
de regular técnicas processuais e “procedimentais a serem seguidas pelo juiz e pelas
partes1, com escopo de dirimir conf‌litos que envolvam direitos ou interesses co-
letivos lato sensu.
As regras contidas na Lei n. 7.347/85 pretendem regular os aspectos processuais da
tutela coletiva de direitos, pressupondo, portanto, a existência de uma norma abstrata
de direito substancial difuso ou coletivo que tenha sido violada e que, justamente por
isso, precise ser tutelada pelo Poder Judiciário.
Não se deve esperar encontrar na Lei n. 7.347/85 modais deônticos relativos a com-
portamentos sociais em relação aos direitos difusos e coletivos, porque sua f‌inalidade é
outra. Serve, justamente de instrumento processual de proteção destes modais deônticos
estampados no direito material constitucional ou infraconstitucional.
Cuida a LACP de prever as normas instrumentais do processo que serão utilizadas
para proteger os comportamentos sociais requeridos em norma de direito substancial. Na
verdade, a Lei n. 7.347/85 visa proteger os direitos difusos e coletivos, e concretizá-los
ante a ameaça ou lesão que seja fruto de uma conduta antijurídica.
Fixada a premissa de que a Lei n. 7.347/85 é, eminentemente2, uma norma de
direito processual.3, resta identif‌icar quais os tipos normativos estabelecidos, já que a
justif‌icativa do seu surgimento foi esmiuçada anteriormente.
Enf‌im, a pergunta que deve ser feita é a seguinte: se a Lei n. 7.347/85 é lei processual
que prevê tutela jurídica diferenciada de determinado tipo de direito, que direitos são
esses que receberam atenção especial e quais as técnicas especiais que foram criadas
para sua efetivação? É o que passamos a desenvolver nos tópicos seguintes.
1. Pedro da Silva Dinamarco. Ação civil pública. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 47.
2. Eminentemente porque há regra também referente ao crime previsto no art. 10, a regra de direito material que cria um fundo de
arrecadação dos valores obtidos na condenação em dinheiro pela Ação Civil Pública, a regra de direito administrativo prevista no
art. 8º etc. Neste sentido ver Rodolfo de Camargo Mancuso. Interesses difusos, p. 26-27, e por Pedro Dinamarco, op. cit., p. 47.
3. Nesse sentido, ver, por todos, José Marcelo Menezes Vigliar. Tutela jurisdicional coletiva. São Paulo: Atlas, 1998, p. 89.
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AÇÃO CIVIL PÚBLICA E MEIO AMBIENTE • MARCELO ABELHA RODRIGUES
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2. OBJETO DE PROTEÇÃO PELA LEI N. 7.347/85
2.1 A ementa “sem prejuízo da ação popular”
O legislador fez questão de deixar expresso logo no caput do art. 1º a regra de que
a utilização da Ação Popular não impede e nem prejudica a propositura da Ação Civil
Pública, ainda que tenham o mesmo objeto e destinem-se ao mesmo f‌im. Mesmo que
a lide tutelada pelo procedimento da Lei de Ação Popular coincida com a lide coletiva
tutelada pelo procedimento da Lei de Ação Civil Pública, resta claro e evidente que em
sede de tutela coletiva o acesso à justiça deve ser amplo e irrestrito.
Os procedimentos especiais coletivos devem abrir portas de acesso à justiça, e
não o contrário, mormente se lembrarmos que a ação popular é o único remédio para
o cidadão, individualmente, promover a tutela coletiva4-5.
2.2 O art. 1º da LACP: “regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação
popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados”
Na sua redação original em 1985, o caput do art. 1º referia-se apenas a “ação de
responsabilidade pelos danos causados” aos bens e aos direitos constantes no referido rol.
A Lei 8.884/94 alterou a redação para incluir a expressão “danos morais e patrimoniais”.6
A nítida intenção do caput alterado do legislador foi contemplar a reparação “integral”
pelos danos causados aos interesses e direitos difusos e coletivos. Assim, tanto os efei-
tos patrimoniais, quanto os extrapatrimoniais do dano aos interesses difusos e coletivos
devem ser tutelados integralmente.
Não nos parece, todavia, que a expressão “dano moral” tenha outro sentido, senão
o de referir-se aos efeitos extrapatrimoniais do dano aos interesses difusos e coletivos.
Não é, portanto, e por exemplo, tutela de direito da personalidade individual de cada
titular que usufrui o meio ambiente (dano à moral, à honra etc.).7
O que parece contemplar o texto é a dimensão social extrapatrimonial que uma
lesão difusa, por exemplo, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado causa numa
coletividade. É de se observar que há muitos bens difusos e coletivos que, se danif‌ica-
dos, importam quase sempre num prejuízo que não encontra uma perfeita equivalência
monetária. O meio ambiente é sempre um excelente exemplo disso. Não há valor cor-
respondente para a extinção de uma espécie, a privação social causada pela supressão
de uma f‌loresta ou área de preservação etc.
4. Infelizmente foi vetado o art. 333 do CPC 2015 que cuidava da conversão da ação individual em coletiva, respeitado o contradi-
tório do autor individual e por decisão judicial mediante requerimento a requerimento do Ministério Público ou da Defensoria
Pública, quando estivessem presentes os requisitos da relevância social e da dif‌iculdade de formação do litisconsórcio.
5. Esta expressão “sem prejuízo da ação popular” é muito importante porque tendo em vista a amplitude de pretensões possíveis de
serem veiculadas por meio da ação civil pública é possível ocorrência de duplicidade de litispendências entre a ação popular e a
ação civil pública, sendo diverso apenas o legitimado condutor das referidas demandas. Esta regra deixa claro que nesta hipótese
a extinção e uma delas é solução que não deve ser admitida, devendo ocorrer a reunião das demandas.
6. Nova alteração no art. 1º, mas que não alterou a redação do caput se deu com a Lei n. 12529.
7. O Ministro Teori Albino Zavascki afastou a concessão do dano moral coletivo por afastá-lo da “noção de dor, de sofrimento
psíquico, de caráter individual. incompatibilidade com a noção de transindividualidade (indeterminabilidade do sujeito passivo
e indivisibilidade da ofensa e da reparação)”. (REsp 598.281/MG, Rel. Ministro LUIZ FUX, Rel. p/ Acórdão Ministro TEORI
ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 02/05/2006, DJ 01/06/2006, p. 147).
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CAPítUlo 3 • obJEto dE tUtElA NA lEI dA Ação CIVIl PúblICA
Nesses casos, o dano é extrapatrimonial e deve ser tutelado da mesma forma, seja
com uma reparação in natura, seja com uma compensação pecuniária, ou ambas. Na
doutrina francesa, chama-se esse prejuízo indenizável de “dano social”.
Assim, descarta-se a interpretação que vê no dispositivo um “dano moral coletivo”,
ou seja, tal como se fosse a somatória das lesões e da dor íntima sofrida pelos titulares
difusos e coletivos pela agressão aos bens arrolados no dispositivo. Essa dor, sentimento
de perda, tristeza etc. corresponde ao dano por ricochete, ou seja, o dano que pode ser
individual ou coletivo e é consequência lógica do dano ao meio ambiente que também
está previsto no art. 14, §1º da Lei 6.938/81.89
O dano moral coletivo, em nosso sentir é, portanto, o dano social extrapatrimonial
suportado pela coletividade indistintamente, não pelo sentimento de perda, frustração
que cada membro suportou na sua alma, mas um dano coletivo de privação temporária
ou perene dos recursos ambientais que proporcionavam um equilíbrio ecológico. Assim,
por exemplo, a privação do rio, dos peixes, da vegetação ciliar destruída pela lama; as
praias cobertas por óleos derramados que impedem a sua fruição, o desequilíbrio que
afeta os mangues cobertos de óleo derramado; o incêndio que altera o clima, que con-
tamina as águas, que destrói o bem estar que a paisagem proporciona etc.
Uma coisa é o dano social, extrapatrimonial e outra é saber os critérios para sua
determinação. Não se discorda de que sob este prisma, na esteira do (REsp 1741681 / RJ):
“o dano moral coletivo é categoria autônoma de dano que se identica com a violação injusta e intolerável
de valores fundamentais titularizados pela coletividade (grupos, classes ou categorias de pessoas) e tem a
função de: a) proporcionar uma reparação indireta à lesão de um direito extrapatrimonial da coletividade”.
Todavia, a função de “sancionar o ofensor e inibir condutas ofensivas a esses direitos
transindividuais” como dito no mesmo acordão parece muito mais uma tentativa de pre-
encher um vazio legal de sanção civil pela gravidade da conduta do que algo que integre
propriamente a ideia de reparação do dano.10
2.3 Vedação de pretensões referentes a tributos e a contribuições
previdenciárias
Como vimos em capítulos anteriores a Lei Ação Civil Pública foi alvo de diversos
golpes estatais (leis e medidas provisórias) que tinham por f‌inalidade o seu enfraqueci-
mento e a sua fragmentação, para evitar que fosse usada como ferramenta que pudesse
socorrer os indivíduos contra o Poder Público, normalmente inoperante na sua função
8. Art. 14 (...) § 1º Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da exis-
tência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério
Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao
meio ambiente.
9. É o caso, por exemplo, do rompimento da barragem que causou dano ao equilíbrio ecológico e este desequilíbrio causou tantos
outros danos por ricochetes tanto a pessoas físicas, quanto jurídicas, tanto individuais, quanto coletivos. Obviamente que tais
bens devem ser tutelados, alguns até pela via da ação civil pública se se tratar de direitos coletivos (difuso, coletivo, individual
homogêneo), mas não se confundem com o dano ambiental.
10. A respeito ver o Capítulo 05, item 5.2.
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