Normas constitucionais com relevância para o processo civil

AutorCleyson de Moraes Mello
Ocupação do AutorVice-Diretor da Faculdade de Direito da UERJ. Professor do PPGD da UERJ e UVA. Advogado. Membro do Instituto dos Advogados do Brasil ? IAB
Páginas29-63
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Capítulo 1
NORMAS CONSTITUCIONAIS COM RELEVÂNCIA PARA O
PROCESSO CIVIL
O processo civil busca a pacificação dos conflitos com justiça.
Ele é ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as
normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República
Federativa do Brasil (artigo 1º, CPC). Dessa maneira, as normas
processuais estão subordinadas à Constituição da República.
1.1 O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
A análise da construção histórica da dignidade humana se
impõe como necessário, pois existe uma distinção entre dignidade (a
dignitas romana ou expressões gregas) como valor, honra e apreço e a
expressão dignidade da pessoa humana como inerente à própria
condição humana. Aquela é condicional, transitória, inigualitária e
contingente; esta é universal e incondicional. A dignidade como valor,
honra e apreço se refere a uma postura pessoal objetivamente apreciada
pela sociedade; já a dignidade referida a condição humana possui
caráter polissêmico e aberto encontrando-se em estado permanente de
mutação e desenvolvimento ao longo do tempo e do espaço que está em
constante concretização e delimitação pela práxis constitucional.1 Daí a
importância da distinção, pois ambas andam de mãos dadas nos dias
atuais: ora a expressão dignidade pode ser utilizada como qualidade,
apreço ou status social; ora pode ser entendida como ideia de igual
dignidade inerente a todo e qualquer ser humano, especialmente,
incorporada nos diplomas jurídico-constitucionais do segundo pós-
guerra.
1 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O pr incípio da dignida de da pessoa humana e a exclusão
social. In: Revista interesse público. Belo Horizonte. n. 4. 1999. p. 24.
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Na Roma antiga, a expressão dignitas estava relacionada ao
status social do indivíduo na sociedade, tais como honra, respeito,
deferência e consideração social até mesmo pela função pública que o
sujeito exercia na comunidade. Era uma espécie de status privilegiado
particular que o indivíduo ostentava no seio da sua comunidade.
De acordo com Ingo Sarlet, “no pensamento filosófico e político
da antiguidade clássica, verificava-se que a dignidade (dignitas) da
pessoa humana dizia, em regra, com a posição social ocupada pelo
indivíduo e o seu grau de reconhecimento pelos demais membros da
comunidade, daí poder falar-se em uma quantificação e modulação da
dignidade, no sentido de se admitir a existência pessoas mais dignas ou
menos dignas. Por outro lado, já no pensamento estóico, a dignidade
era tida como a qualidade que, por ser inerente ao ser humano, o
distinguia das demais criaturas, no sentido de que todos os seres
humanos são dotados da mesma dignidade, noção esta que se encontra,
por sua vez, intimamente ligada à noção de liberdade pessoal de cada
indivíduo (o homem como ser livre e responsável por seus atos e seu
destino), bem como a ideia de que todos os seres humanos, no que diz
com a sua natureza, são iguais em dignidade. Com efeito, de acordo
com o jurisconsulto político e filósofo romano Marco Túlio Cícero, é a
natureza quem descreve que o homem deve levar em conta os interesses
de seus semelhantes, pelo simples fato de também serem homens, razão
pela qual todos estão sujeitos às mesmas leis naturais, de acordo com
as quais é proibido que uns prejudiquem aos outros, passagem na qual
(como, de resto, encontrada em outros autores da época) se percebe a
vinculação da noção de dignidade com a pretensão de respeito e
consideração a que faz jus todo ser humano. Assim, especialmente em
relação a Roma notadamente a partir das formulações de Cícero, que
desenvolveu um compreensão da dignidade desvinculada do cargo ou
posição social é possível reconhecer a coexistência de um sentido
moral (seja no que diz às virtudes pessoais do mérito, integridade,
lealdade, entre outras, seja na acepção estóica referida) e o sociopolítico
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de dignidade (aqui no sentido da posição social e política ocupada pelo
indivíduo).”2
Dessa maneira, é possível afirmar que os primórdios da
dignidade da pessoa humana encontram-se na antiguidade clássica e o
seu sentido e alcance estava relacionado à posição que cada indivíduo
ocupava na sociedade. Como dito acima, a palavra dignidade provém
do latim dignus que representa aquela pessoa que merece estima e
honra, ou seja, aquela pessoa que é importante em um grupo social.
No período medieval, a dignidade da pessoa humana passou a
entrelaçar-se aos valores inerentes à filosofia cristã. Melhor dizendo: a
ideia de dignidade passa a ficar vinculada a cada indivíduo, lastreada
no pensamento cristão em que o homem é criação de Deus sendo salvo
de sua natureza originária por Ele e possuindo livre arbítrio para a
tomada de suas decisões. Severino Boécio (480-524) é o divisor de
águas de dois tempos: a antiguidade e o medievo. Boécio é, pois, o
precursor da definição filosófica de pessoa (humana), embora seu
desenvolvimento pleno tenha se dado na metade do século XIII. O seu
contributo foi situar a pessoa humana no horizonte da racionalidade a
partir de sua condição de singularidade. A partir de Boécio, a noção de
pessoa como substância individual e racional elevou o ser humano a
uma nova esfera de dignidade e responsabilidade, implicando em nova
perspectiva de ser e estar no mundo.
De acordo com Savian Filho3 e Ricardo Antonio Rodrigues4,
“Boécio elabora no capítulo III, do texto Contra Eutychen et Nestorium
a definição de Persona que se tornará clássica no pensamento medieval
e moderno. Já presente no contexto das controvérsias teológicas dos
primeiros séculos, em oposição com natura (physis) e essentia (ousia),
persona torno-se palavra central também para a antropologia filosófica
e teológica. Para um breve histórico dos principais passos da evolução
2 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos dire itos fundamentais: uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria dos Advogados; 2011,
p. 34-36.
3 BOÉCIO. Escritos (OPUSCULA SACRA). Tradução, introdução, estudos introdutórios e notas
Juvenal Savian Filho. Prefácio de Marilena Chauí. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.225-227.
4 RODRIGUES, Ricardo Antonio. Severino Boécio e a Invenção Filosófica da Dignidade
Humana. In: Seara Filosófica. N. 5, Verão, 2012, p. 3-20.

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