Ordem econômica e financeira

AutorPaulo Roberto de Figueiredo Dantas
Páginas773-809
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ORDEM ECONÔMICA E FINANCEIRA
15.1 ESTADO LIBERAL
A Revolução Francesa é tida como o marco que substituiu o antigo regime absolutista
pelo modelo de Estado Liberal. Esse novo modelo tinha por objetivo permitir que a burguesia,
a classe então emergente, tivesse condições de ampliar suas atividades, até então francamente
obstaculizadas pelas dif‌iculdades de livre circulação de riquezas e aquisição de bens que o
antigo regime lhes impunha. Concebeu-se, então, um modelo em que a atuação do Estado
fosse reduzida o máximo possível, com ingerências mínimas nas relações privadas.
Com o sucesso da Revolução Francesa, o Estado passou a ser considerado um mal ne-
cessário, cujas funções foram reduzidas à manutenção da segurança jurídica, garantindo o
exercício de direitos e reprimindo suas violações.1 Àquela época, a separação entre direito
público e direito privado era bem pronunciada. Ao primeiro cabia tão somente disciplinar
as relações jurídicas em que o Estado f‌igurava como uma das partes, e que tinham por
fundamento a supremacia do interesse público, a busca do interesse geral; ao segundo, a
regulação das relações entre particulares, cabendo ao Estado intervir nas relações jurídicas
apenas para atender aos interesses do próprio indivíduo.2
Os ideais da Revolução Francesa, liberdade, igualdade e fraternidade, notadamente os
2 (dois) primeiros, foram inequivocamente incorporados ao ordenamento jurídico daquela
época. O Estado Liberal passou a consagrar que todos eram iguais perante a lei, e que tam-
bém eram livres, tanto em face dos demais cidadãos como do próprio Estado, para celebrar
os contratos como melhor lhes aprouvesse, salvo raras exceções, quando houvesse lesão a
normas de ordem pública ou aos bons costumes. Nas palavras de Teresa Negreiros,3
“o liberalismo econômico, também ele uma doutrina desenvolvida no século XVIII, inspira-se na valorização da vontade
individual como elemento de garantia do equilíbrio econômico e da prosperidade”. Esclarece a autora, ademais, que, “na
base desta doutrina econômica está a concepção de que a satisfação dos interesses individuais dá lugar, como consequência
inexorável, à satisfação do interesse geral, que nada mais é do que a soma dos interesses individuais.
1. Nesse sentido, é a lição de Augusto Geraldo Teizen Júnior: “O surgimento do Estado Liberal está ligado à ascensão ao
poder econômico e político da burguesia. Paradoxalmente, é na limitação do poder estatal ao mínimo necessário, que
o liberalismo veio a se desenvolver no plano jurídico. A ideia de contrato social, de Rousseau, foi, no plano político, a
implantação do ideário burguês que pressupunha a realização da individualidade por meio do contrato. Cabia ao Estado
proteger e sancionar os direitos individuais de cada um. Sendo-lhe defeso interferir na livre iniciativa e no espírito de lucro,
salvo quando esta atente contra a ordem pública. O Estado não devia interferir nas atividades dos indivíduos, devendo
preocupar-se apenas em garantir-lhes o gozo de seus direitos”. A função social no Código Civil. Revista dos Tribunais,
2004, p. 86.
2. Eliseu Jusefocivz: “Nesse contexto de oposição, as relações entre Direito Privado e Direito Público eram bem def‌inidas.
Ao Direito Privado cabia regular o âmbito dos direitos naturais e inatos dos indivíduos, por isso, segundo a fórmula
kantiana, a sua fonte residia nos princípios da razão; enquanto o Direito Público era aquele que provinha do Estado,
fruto da vontade do legislador, voltado para assegurar objetivos de interesse geral”. Contratos: proteção contra cláusulas
abusivas. Juruá, 2005, p. 34.
3. Teoria do contrato: novos paradigmas. Renovar, 2002, p. 25-26.
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CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL • PAULO ROBERTO DE FIGUEIREDO DANTAS
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Vê-se, portanto, que tanto a liberdade como a igualdade eram vistas exclusivamente
sob o ponto de vista formal (e não substancial), uma vez que a lei tinha por função apenas
garantir a liberdade para contratar, por meio da presunção de que todos eram iguais e livres
para celebrar seus pactos. Em suma, o Estado não se preocupava, àquela época, com a efeti-
va liberdade e igualdade dos indivíduos, nas relações jurídicas que encetavam; bastava-lhe
apenas garantir a presunção legal de sua ocorrência.4
Essa realidade foi sintetizada, de maneira muito clara e objetiva, por Anna Carolina
Resende e Azevedo.5 Com efeito, referida autora nos ensina que, àquela época, “a liberdade
era vista na sua concepção formal, isto é, a preocupação era em se garantir, por meio de lei, a
simples liberdade de acordar, sem se aferir a sua aplicação na prática”. Segue nos lembrando
que “o mesmo ocorria com relação à igualdade, bastava a presunção de que todos eram iguais
para que se tivesse como presente o princípio da igualdade”.
À época do liberalismo clássico, as constituições não tinham por objeto disciplinar as
relações jurídicas celebradas entre particulares. Em relação aos indivíduos, disciplinavam
apenas os vínculos que eles mantinham com o Estado, quando este atuava com seu poder
de império. As normas relativas às relações privadas, estas f‌icavam a cargo do Código Civil,
fundamentado na liberdade e igualdade formais, dando suporte à autonomia da vontade, à
propriedade privada e à liberdade contratual (os pilares do liberalismo econômico), e que,
por tal razão, era tido como a “Constituição da vida privada”.6
Como vimos em outras oportunidades, as constituições dos chamados Estados liberais
tinham por objeto apenas as normas essenciais de regência do Estado, sobretudo aquelas
que tratavam da sua estrutura, forma de Estado e de governo, regime político, modo de
aquisição e exercício do poder. Em relação aos particulares, tratavam apenas dos direitos e
garantias fundamentais de primeira geração (direitos individuais e políticos), para a pro-
teção dos indivíduos contra eventuais arbitrariedades praticadas pelo Estado, no exercício
do seu poder de império. Neste sentido, por exemplo, é a lição de Paulo Luiz Netto Lobo7:
“as primeiras constituições, portanto, nada regularam sobre as relações privadas, cumprindo sua função de delimitação
do Estado mínimo”. Segue esclarecendo o autor que o papel do Estado, àquela época, limitava-se a “estabelecer as regras
do jogo das liberdades privadas, no plano infraconstitucional, de sujeitos de direitos formalmente iguais, abstraídos de suas
desigualdades reais”.
André Ramos Tavares,8 por sua vez, nos ensina que, no denominado Estado Liberal,
“havia a concepção de que ao Estado cumpriria cuidar da ordem pública, proporcionando
um aparato policial, defendendo as instituições (prestando Justiça) e protegendo-se contra
agressões internacionais”. Já o mercado, nas palavras do ilustre doutrinador, “deveria de-
senvolver-se livremente, isto é, sem a interferência do Estado, salvo para prestar a necessária
segurança e para atuar naqueles setores nos quais não haveria interesse para a iniciativa
privada”.
4. Em termos semelhantes, Fernando Noronha af‌irma que, em razão da concepção formalista, meramente teórica, da igual-
dade e das liberdades básicas, os homens eram considerados livres e iguais em direitos, porém sem haver a preocupação,
por parte do Estado, em proporcionar as condições concretas necessárias para o exercício daquelas liberdades. O direito
dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual. Saraiva, 1994, p. 64.
5. A evolução principiológica dos contratos. Revista CEJ, Brasília, n. 24, p. 62-66, jan./mar. 2004.
6. É o que nos af‌irma, por exemplo, Teresa Negreiros: “O paralelismo entre direito civil e direito constitucional f‌ica repre-
sentado pela existência de duas ‘Constituições’: ao lado da Constituição dirigida à disciplina da vida pública, o Código
Civil era concebido como a ‘Constituição da vida privada’, baseada na propriedade e no contrato”. Op. cit., p. 49.
7. Constitucionalização do direito civil. Direito civil: atualidades. Del Rey, 2003, p. 201-202.
8. Direito constitucional econômico. Método, 2003, p. 50.
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ESTADO LIBERAL
– As constituições dos Estados liberais tinham por objeto apenas as normas essenciais de regência do Estado, sobretudo aquelas
que tratavam da sua estrutura, forma de Estado e de governo, regime político, modo de aquisição e exercício do poder.
– Em relação aos particulares, tratavam apenas dos direitos e garantias fundamentais de primeira geração (direitos individuais
e políticos), para a proteção dos indivíduos contra eventuais arbitrariedades praticadas pelo Estado, no exercício do seu poder
de império.
– As normas relativas às relações privadas, estas cavam a cargo do Código Civil, fundamentado na liberdade e igualdade formais,
dando suporte à autonomia da vontade, à propriedade privada e à liberdade contratual (os pilares do liberalismo econômico).
– Tanto a liberdade como a igualdade eram vistas exclusivamente sob o ponto de vista formal (e não substancial). O Estado
não se preocupava, àquela época, com a efetiva liberdade e igualdade dos indivíduos, nas relações jurídicas que encetavam;
bastava-lhe apenas garantir a presunção legal de sua ocorrência.
15.2 ESTADO SOCIAL
A despeito de seu importantíssimo papel na consagração do Estado moderno, regido
por uma constituição, destinada inclusive a proteger o cidadão das arbitrariedades estatais,
o modelo liberal clássico, ao invés de promover e distribuir a riqueza entre todos, acabou por
acentuar as desigualdades socioeconômicas entre os habitantes de um determinado Estado,
com forte concentração de renda na mão de poucos, permanecendo parcela expressiva da
população sem acesso a um mínimo de condições que lhe permitissem viver com dignidade.
Reforçam essa realidade as ponderações de Paulo Luiz Netto Lobo:
“Consumou-se o darwinismo jurídico, com a hegemonia dos economicamente mais fortes, sem qualquer espaço para
a justiça social. Como a dura lição da história demonstrou, a codicação liberal e a ausência de constituição econômica
serviram de instrumento de exploração dos mais fracos pelos mais fortes, gerando reações e conitos que redundaram no
advento do Estado Social”9.
E assim, graças aos movimentos sociais do f‌inal do século XIX e da primeira metade
do século XX, as constituições passaram a prever, de maneira progressiva e cada vez mais
intensa, diversas hipóteses de intervenção estatal na vida privada. Ao invés de conter apenas
regras de regência do Estado e de proteção dos indivíduos frente ao poder estatal, passaram a
conter, igualmente, um conjunto de normas de ordem social e econômica, tanto para a redu-
ção das desigualdades sociais, como também para incentivar o desenvolvimento nacional.10
Com efeito, como vimos outrora, somadas às denominadas liberdades negativas, ou
seja, ao conjunto de direitos conferidos aos cidadãos que os protegiam contra potenciais
arbitrariedades do poder estatal, impedindo que este atuasse de maneira a inviabilizar a
liberdade de propriedade, de contratação, de manifestação do pensamento etc., passaram a
f‌igurar nos textos constitucionais também as denominadas liberdades positivas, o conjun-
to de direitos que impunham ao Estado a prática de diversas ações, visando à obtenção da
igualdade material entre os indivíduos.
9. Op. cit., p. 202.
10. Em termos semelhantes são as palavras de Gustavo Tepedino: “A partir do longo processo de industrialização que tem
curso na primeira metade do século XX, das doutrinas reivindicacionistas e dos movimentos sociais instigados pelas
dif‌iculdades econômicas, que realimentavam a intervenção do legislador, verif‌ica-se a introdução, nas Cartas políticas e
nas grandes Constituições do pós-guerra, de princípios e normas que estabelecem deveres sociais no desenvolvimento da
atividade econômica privada. Assumem as Constituições compromissos a serem levados a cabo pelo legislador ordinário,
demarcando os limites da autonomia privada, da propriedade e do controle de bens. A Constituição brasileira de 1946
é um bom exemplo desta tendência, expressa nitidamente na Constituição italiana de 1948”. Premissas metodológicas
para a constitucionalização do Direito Civil. Temas de direito civil. Renovar, p. 7.
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