O direito de propriedade e sua evolução constitucional

AutorMaria Coeli Simões Pires
Ocupação do AutorBacharel em Direito pela Pontifícia. Universidade Católica de Minas Gerais
Páginas531-571
Capítulo 12
O DIREITO DE PROPRIEDADE
E SUA EVOLUÇÃO CONSTITUCIONAL1
1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES1
A propriedade é uma in stituição milenar, mar cada por um substrato eco-
nômico, jurídico e político, que vem sofrendo mod ificações ao longo do tempo.
Assim, qua lquer debate que a tematize deve tomá-la, nessas perspectivas, ao i n-
fluxo das diversas injunções, assentando-se, desde logo, a inexistência de uma
noção absoluta, defin itiva acerca desse instituto, eis q ue seus contornos e alcance
variam confor me o tempo histórico e o paradigma q ue o (re)signif ique.2
O instituto evoluiu, desd e o Direito Romano, com algumas rest rições
das servidões de v izin hança, passando pela clássica noção ligada à tradição
do século XVI II, como direito absoluto irrestrito, exclusivo e ir revogável do
proprietário, até incorporar as mais recentes tendências tradu zidas na fu n-
ção social da propr iedade.
No Brasil, da Const ituição Imperial à Carta Cid adã, transcorreram mai s
de cento e cinquenta anos, que assistiram a mudanças profu ndas na sociedade,
não sendo preciso investigação histórica acurada para que se perceba a d imen-
são de tais modi ficações. Basta lembrar que, há pouco mai s de cem anos, vivia-se
em economia escravocrata, ma rcada por relações sociais hoje inconcebíveis.
A propriedade privada, i nstituto que constitui o princ ipal sustentáculo
do regime capita lista, não esteve infensa à s aludidas mudanças. Pelo contr ário,
1 PIRES, Mar ia Coeli Simões. “A função social no d ireito urba nístico e na política
urbana: um a nova ordem de sustentab ilidade da s cidades”. In: PEREIR A, Flávio
Henrique Unes; DIA S, Maria Tereza Fonseca. Cidadani a e Inclusão Soc ial: Estu-
dos em Homenagem à Profes sora Miracy Bar bosa de Sousa Gustin . Belo Horizon-
te: Editora Fóru m, 2008: (377-406). ISBN: 978-85-7700-152-1. O artigo aqui referido
foi extensa mente incorporado na atua lização de parte do pr esente capítulo.
2 PIRES, Mar ia Coeli Simões. “A função social no d ireito urba nístico e na política
urbana: um a nova ordem de sustentab ilidade da s cidades”. In: PEREIR A, Flávio
Henrique Unes; DIA S, Maria Tereza Fonseca. Cidad ania e Inclusão Social: E studos
em Homenagem à Profes sora Mirac y Barbosa de Sous a Gustin. Be lo Horizonte:
Editora Fóru m, 2008: (377-406). ISBN: 978-85-7700-152-1.
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Da proteção ao patrimônio cultural
seu delineamento sofr eu ponderável revisão ao longo desse tempo. Aliás, não
poderia ser diferente, pois a maneira como as pessoas se situam em face das
coisas, dos bens, natu rais ou culturais , determina a essência do sistema soc io-
econômico a ser discipli nado pelo Direito.
Hodiernamente, a propr iedade já não se caracteriza como di reito sub-
jetivo exclusivo do proprietário; em benefício da coletividade, adm item-se,
constitucionalmente, limitações de ordem pública e restrições ao seu uso e
ao seu conteúdo. E mais que isso, já se admite a fu nção social da propriedade
como elemento de sua estrutu ra.
Assim, no Brasi l, o atual direito de propr iedade afigura-s e como direi-
to individua l, enquanto apropriação econômica da coisa, mas sujeito à inge-
rência do Estado para o c umprimento de sua função socia l. De fato, a Cons-
tituição Federal consagra significativa intervenção estatal sobre a
propriedade privada, lega ndo à legislação ord inária defini r a instrumentali-
zação do Poder Público para efetivá-la..
Dessa forma, a propriedade, reconceitualizada, vem inserida em um
quadro jurídico de restrições ou limitações impostas pelo Estado, entre as
quais, aquelas relac ionadas com a tutela de determinados ben s – cuja conser-
vação ou preservação interessa à coletiv idade – contra possíveis danos decor-
rentes da naturez a ou da atividade humana.
O conceito jurídico da propriedade, à sua vez, permite a recupera-
ção, pelo pesquisador, de toda uma trama de relações vivenciadas no âm-
bito da infraestrutura. Nesse plano, como interagem as pessoas enquanto
produtoras e para quem produ zem são algumas das ind agações principais,
cuja solução advirá da compreensão do fenômeno propriedade sob a ótica
do direito. Outra perg unta fundamental a ser re spondida por quem obser-
va a evolução das normas jurídicas com fulcro nas próprias Constit uições
é a de como a sociedade intenta, num deter minado degrau evolutivo, alte-
rar as relações ex istentes? Isto é, como a sociedade concebe utopias, como
ela se programa pa ra o futuro?
2. A EVOLUÇÃO DA PROPRIEDADE NAS CONSTITUIÇÕES
BRASILEIRAS ANTERIORES À DE 1988
Com foco nesse duplo papel do Direito, que é, a um só tempo, retra-
to e vaticínio, vejam-se, concretamente, sob o prisma histórico-constitu-
cional, a paulatina alteração do conceito de propriedade no Brasil, com a
perda do caráter que lhe era imanente no Liberalismo Clássico – corrente
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de pensamento que prevaleceu no Ilum inismo, que tomou conta dos sécu-
los XVIII e XIX – e a aquisição de contornos que a amoldam ao Estado So-
cial de Direito e, mais precisamente, ao Estado Democrático de Direito
que hodier namente pontif ica.
Nesse sentido, vale traça r, a prior i, uma linha div isória entre as Cons-
tituições do sécu lo XX e as do passado. Na Constituição de 1824 e na de 1891,
prevaleciam verdades a xiomáticas do pensamento liberal – derivadas da re-
flexão de Adam Smith e Rica rdo, entre outros –, destacando-se o direito à
propriedade como bem jurídico intangível, de exercício pleno e ilimitado,
posto em maior evidência que o d ireito à vida. O mesmo tratamento não se
registrou na s Cartas Magnas segu intes.
Tomando-se os textos constitucionais como parâmetros para refle-
xão, faz-se a reprodução dos di spositivos alusivos à matéria em estudo, reg is-
trando-se comentár ios cabíveis sobre o que traziam como novidade.
2.1 Constituição de 1824
Na Constituição de 1824, o art. 179, em seu caput e no inciso 22, con-
signava os preceitos que disc iplinavam, ou antes, estatuía m a propriedade:
“Art. 179 – A inviolabilidade dos dir eitos civis e políticos dos cida-
dãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança indi-
vidual e a propriedade, é g arantida pela Constit uição do Império,
pela mane ira seguint e:
[...]
22 – É garant ido o direito de propriedade em toda a sua plenitude.
Se o bem público, legalmente verif icado, exigir o uso e empr ego da
propriedade do cidadão, será ele prev iamente indenizado do valor
dela. A lei marcará os ca sos com que terá lugar esta única exceção
e dará as reg ras para se determinar a i ndenização”.
Não se previa aí qualquer rest rição à propriedade privada.
Assinal a-se que é a Lei n. 601/1850 (Lei de Terras), editada sob a égide
da Carta Imper ial, que insere as terras brasileiras no comércio jurídico, já
que, até então, elas só eram passíveis de aquisição na fórmula de posse. A
dicção da Lei referida prevê: “Ficam proibidas as aquisições de terras por
outro título que não seja o de compra”.
Sob as luzes do paradigma do Estado Liberal, a propriedade era tida
como direito supremo do ind ivíduo:
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