Tombamento

AutorMaria Coeli Simões Pires
Ocupação do AutorBacharel em Direito pela Pontifícia. Universidade Católica de Minas Gerais
Páginas251-338
Capítulo 7
TOMBAMENTO
1. CONCEITO
Para a delim itação conceitual de tombamento, a atenção há de perpas-
sar, fundamenta lmente, quatro planos de cogitação do objeto: o do núcleo et-
mológico, o do instituto, o do ato resulta nte da aplicação do instituto seg undo
a matriz normat iva de sua regência, considerado em si ou no bojo do procedi-
mento, e ainda o do fato que marca o reg istro daquela materiali zação.
No plano eti mológico, tem-se que os vocábulos tombamento, tom-
bo, tombar, segundo os principais dicionários e enciclopédias contemporâ-
neos, ligam-se ao mesmo corpo s emântico, significa ndo registro, inventário
e arrolamento.
No direito pátrio, o termo tombar e seus correlatos foram aportados
do ordenamento jurídico português. Tombamento, usado no Código de
Processo Civi l luso de 1876 como sinônimo de demarcação, foi neste mesmo
sentido empregado no Código de Processo Civil de 1939. Posteriormente,
preceitos do Código Administrativo de 1940 assimilaram, definitivamente,
o termo na sinoní mia de cadastro, uma vez que, usua lmente, já se designava
por tombo o registro, o a rquivo e a catalogação de documentos públicos ou
históricos, ra zão pela qual se chama Torre do Tombo o atual Arquivo Nacio-
nal Português,1 em Lisboa, origi nariamente, a casa em que se conservavam
os livros das lei s, escrituras públicas, contratos, t ratados com estados estran-
geiros e outros papéis autênticos do Rei no.2
1 TOMBAMENTO. In : Grande Enciclo pédia Portugu esa Brasileira. L isboa: Editori al
Enciclopédia L imitada, s.d. p. 23, v. 32.
2 “A Torre do Tombo é uma das instit uições mais antiga s de Portugal. Desde a sua
instal ação numa das torre s do castelo de Lisboa, o corrida no rein ado de D.
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Da proteção ao patrimônio cultural
Retomando outras tra mas das raízes do vocábulo, Pontes de Mir anda3
registra:
“Tombar (do latim tu mulus, elevação da terra, donde tombo por
tômoro, talvez por haver marcos com alteamentos dos limites
das terras) tem o sign ificado de lançar em liv ro de tombo, e nada
tem com tombar (do velho alto alemão tomôn, provavelmente
formado no espanhol, passando ao português e ao inglês). O
tombamento é apenas, hoje, a inscrição no livro do tombo, tal
como acontecia com os bens da Coroa”.
Esse termo reinícola do direito luso incorpora-se ao direito brasileiro,
por inf luência da relação Metrópole-Brasil Colônia e por espí rito de preserva-
ção do patrimônio linguíst ico, atraindo formal ismos e ritual idades próprias,
de modo que os bens que se devam submeter a regi me especial de proteção do
Poder Público por meio de tombamento hão de ser insc ritos nos livros de tom-
bo existentes no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –
IPHAN, ou no livro apropriado da repartição estadual ou municipal. Daí o
entendimento comum de que tombar é in screver o bem em livros especiais.
Como instit uto jurídico, assi nala-se que o tombamento, es pecialmen-
te na experiênci a brasileira, constitui-se em r elevante instrumento – de status
constituciona l – da atuação estatal com vistas a promover a proteção do patr i-
mônio cultural, sustentando-se nos interesses dif usos e no direito coletivo à
permanência e à i ntegridade dos bens dessa natureza para a fruição das gera-
ções presentes e futu ras e, em última análi se, em um dos vários mecanismos
de efetivação dos direitos sociais à cultu ra, na dimensão patrimonial _ _ (re)
signif icação, integridade e fr uição dos referentes cultura is –, o que densifica o
direito cultural, na condição de dotação universal proclamada pela ONU,
“como prerrogativa de participa r da vida cultural da comunidade”. O institu-
to, tradicionalmente, tratado, na perspectiva hegemônica do Estado, na lata
seara do Direito P úblico, e, como peculiar instr umento de intervenção na pro-
priedade, com sítio estrito no Direito Administrativo e lastro no poder de
Fernando e ri gorosamente desde 1378, data d a primeira certidão conhecid a, até
1755, prestou serviço como arquivo do rei , dos seus vassalos, da adm inistração do
reino e das pos sessões ultra marina s. Além de serv ir à admin istração rég ia, com
funções seme lhantes às de um arqu ivo dos nossos dias, o ser viço mais importa nte
prestado pela Torre foi o das ce rtidões, solicitado pel as instituições e m geral. Atu-
almente, há o A rquivo Nacional da Torre do Tombo”. NOHARA, Irene Patrícia.
Direito administrativo. 6. ed. São Paulo: Atlas , 2016. p. 756.
3 M IRANDA, Franc isco Pontes de. Comentários à Const ituição de 1967. Revista dos
Tribunais. p. 371, t. 6.
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polícia, encerra u m regime próprio de proteção ao patrimônio c ultural de na-
tureza material, voltado para a gara ntia de permanência dos bens de suporte
aos valores cultu rais, com vínculos de imodi ficabilidade e seus consect ários.
O instituto, porém, por força da evolução no tratamento dispensado
ao patrimônio cu ltural em documentos internac ionais ou inter nos e da rea-
lidade das cidade s brasileiras, com a assim ilação da importância do contexto
urbano no qual se i nsere o bem tombado, das áreas de entorno, dos conjun-
tos urbanos arquitetônicos e paisagísticos, da integração dos instrumentos
interventivos com locus na urbe, foi, desde a década de 70, clivado pelo Di-
reito Urbanístico, conquanto em l inha mais conservadora.
Cumpre salientar, também, que, de há muito, tem ganhado corpo a
estratégia de deslocamento do instituto do tombamento para o campo do
Direito Ambiental, a partir de uma visão holística e unitária do meio am-
biente na sua bifurcação pragmática em meio ambiente natural e meio am-
biente cultura l, ou ainda na tríplice abordagem a cogitar, também, do meio
ambiente artificial, tese defendida enfaticamente pelo Ministério Público,
na tentativa de comunicar ao campo da proteção patrimonial da cultura as
metodologias de análise, os princípios reitores daquela seara: prevenção,
precaução, poluidor-pagador, responsabilidade, limite e função social da
propriedade, com plena ressonânci a na legislação, na prática admin istrativa,
na doutrina e na jur isprudência.
Ana Maria Morei ra Marchesan mostra a prevalência de ssa visão sistêmi-
ca no tratamento da proteção patr imonial no bojo do Direito Ambiental: “afir-
ma-se estar a absoluta maioria da doutrina nacional inserida numa tendência
dominante, inclusive em sede de Direito Comparado, de atribuir tratamento
integrado ao bem ambienta l, o que aliás, já foi assentado por Steigleder”.4
Após a Constitu ição de 1988 e, mais efetivamente, da edição do Estatuto
da Cidade, o Direito Adm inistrativo, na interface com outros ramos, notada-
mente em torno do eixo da propriedade, reflete novas tensões do tombamen-
to, alimentadas p elo Direito Urbanístico, nessa fa se de (re)investida deste ra mo,
mais enfaticamente em razão dos novos signi ficantes democráticos, como a
função social daquela, cuja importância é amplificada no tocante à tipologia
imobiliár ia urbana. Edésio Fernandes, r egistrando os deslocamentos conceitu-
ais e legislat ivos atinentes ao tombamento, vislumbra, na espécie, “um in stru-
mento central não apenas para a política de preservação do patrimônio
4 MARCHE SAN, Ana Mar ia Moreira. A tutel a do patrimôni o cultural sob enfoque d o
direito ambiental. Porto Aleg re: Livraria do Advogado, 20 07. p. 87.
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